Capítulo 34
*No Coração da Mina, onde a Realidade começava a dissolver-se...*
A temperatura descia a cada passo, mas não era frio comum - era uma ausência de Tempo, de Forma, de Certeza. Lauriel e Nicolás avançavam, lado a lado, em direcção ao Centro Cristalino onde o Olho de Hórus cintilava, suspenso num Vórtice de Energia Viva.
As Runas brilhavam em Azul e Dourado, formando padrões que apenas a Alma conseguia ler. Aion, ainda num Estado Latente, pulsava suavemente no Centro do Diamante Maior, como se estivesse prestes a nascer de novo.
Lauriel parou subitamente.
- Este é o Último Véu - sussurrou. - A partir daqui… Nada poderá ser apagado!
Nicolás passou à frente dela, firme. Os ombros, outrora inclinados pela dúvida, estavam agora erguidos. A sua energia não era mais apenas de contemplação - Era de decisão.
- Então é aqui que a história muda - disse, com voz grave. - Não vou esperar que seja outro a fazer o que precisa de ser feito. Já assisti demais. Agora é a minha vez de agir! Em nome do meu pai, o deus Hórus! Em nome do Amor Maior, o Amor de Hórus e Mikel!
Fechou os olhos por um instante. O rosto de Leo surgiu-lhe na mente: apesar de ter estado apenas algumas horas com Leo, reconheceu os olhos que sorriam mesmo quando o Mundo era duro, as mãos calejadas pela Terra, fruto das suas aventuras em minas do Mundo inteiro, o cheiro das tardes quentes da aldeia onde se cruzaram.
- Se ele ainda estiver vivo, vou encontrá-lo. Se não estiver… Vou fazer com que o sacrifício dele tenha valido a pena. Assim como o meu pai fez pelo Mikel. Por ele. Por mim. Por todos nós. Pelo que ainda pode nascer daqui!
Lauriel fitou-o com respeito renovado. Pela primeira vez na vida, não via em Nicolás apenas um canal ou discípulo. Via um igual. Um Guardião da Nova Luz! Um Sombras da Luz!
A parede de energia à frente deles oscilava como um Espelho Líquido. Nicolás foi o primeiro a aproximar-se. Estendeu a mão. Ao tocar a superfície, esta brilhou - e separou-o de Lauriel, arrastando-o para o Interior do seu próprio Véu.
*Do outro lado da mina, num túnel instável...*
Doña Bárbara, González e Leo avançavam. Sparky tinha desaparecido, depois de escutar a mensagem telepática. Leo tropeça numa rocha, e o tecto de rocha começa a ruir. González, atrás dele, vê o perigo iminente.
- Leo, salta! - grita.
Leo hesita, mas González empurra-o com força, atirando-se sobre ele no último segundo.
CADABOUUUUUUUUUUUUUUMMMMMMMMMMMMMMMMM!!!!
Um estrondo.
Poeira.
Silêncio.
Quando Leo se levanta, tonto, coberto de pó e sangue seco, ouve um som abafado. Vira-se. Vê apenas o braço de González entre os escombros - o resto do corpo soterrado sob toneladas de pedra.
- González?! - grita, ajoelhando-se ao lado. - Não! Espera! Vamos tirar-te daí! Vamos... Vamos...
- Vai… Termina o que começámos… E sê melhor do que eu fui.
Estas foram as últimas palavras proferidas, num sussurro rouco.
Leo tenta afastar pedras, mas elas estão coladas umas às outras como se a própria mina as tivesse selado. Ele grita. Soca a parede. Bate com os punhos até sangrar.
- Filho da mãe... Porquê tu?! - grita, com a voz embargada. - Não eras tu! Era eu quem devia...!
Sparky aparece e aproxima-se devagar, uivando baixo, sentindo a despedida.
Leo permanece ali, em silêncio, por instantes que parecem horas. O seu rosto endurece. As lágrimas caem, mas os olhos queimam com um novo tipo de fogo.
Ele levanta-se. Vira-se lentamente para Doña Bárbara.
- Vamos. Ele morreu por algo maior. E eu não vou desperdiçar isso.
Doña Bárbara apenas assentiu, com os olhos semicerrados, sem disfarçar a dor. O som dos cristais ao redor deles pulsava em tons escuros, como se a mina também chorasse. Mas dentro de Doña Bárbara, não havia lágrimas. Só uma ferida que nunca deixaria sarar. Perder um leal é mais cruel do que perder um amor - porque os leais nunca nos deixam, mesmo quando partem.
Leo seguia com Doña Bárbara, mais calado que o habitual. O silêncio entre eles não era hostil, mas carregava o peso de algo que ainda não tinha sido dito. Sparky caminhava adiante, farejando caminhos invisíveis.
- Estás estranho - comentou Bárbara. - Desde que González… - calou-se por um instante. - Ele foi um bom homem.
- Ele morreu por minha causa - disse Leo, abruptamente.
Doña Bárbara parou, olhando-o com firmeza.
- Não. Ele morreu para que tu vivesses. Usa isso como honra, não como peso.
Um cristal à frente deles estalou, revelando um símbolo: o símbolo da Mentira Desfeita.
- Estamos a entrar na zona onde nada pode ser escondido - disse ela. - Prepara-te. A partir daqui, nem a verdade se esconde atrás da dor.
*No exterior do labirinto…*
Juca e Juán caminhavam agora ao lado de Don Alfonso, que os guiava por um novo plano: uma galeria ancestral onde os nomes dos Antigos Portadores estavam inscritos em luz viva. As paredes pulsavam suavemente, como se respirassem - como se reconhecessem a juventude que ali chegava agora à beira da maturidade.
- Este é o Teste da Escolha - explicou Don Alfonso, com a voz serena como um sino antigo. - Aqui, não vencerão o medo. Vencerão a ilusão de que há apenas um caminho.
No centro da sala, três portais erguiam-se como sentinelas de cristal:
Um feito de fogo e espinhos, que crepitava como o desejo contido.
Um feito de gelo e vidro, frio e translúcido como as emoções não ditas.
Um feito de luz dourada… Mas oco, sem qualquer sensação - uma promessa vazia de perfeição.
- Cada portal leva-vos a um fragmento de vocês mesmos - disse Don Alfonso. - Nenhum é o certo. Todos são válidos. Mas só um, vos devolverá aqui… Transformados.
Juán aproximou-se do portal de gelo. O frio cortava-lhe a pele, mas os olhos não desviavam.
- Sempre fugi da dor - murmurou. - Talvez seja tempo de atravessá-la. De frente. Sem disfarces.
Juca, por sua vez, caminhou até ao portal de fogo. Sentiu o calor puxar-lhe as memórias, os desejos, os medos escondidos no corpo.
- Talvez seja tempo de sentir tudo… E não queimar. De deixar queimar só o que já não serve.
Eles olharam um para o outro. A ligação entre eles era feita de muitas coisas: carinho, impulso, espelho e desafio. Mas agora era clara.
- Amigos? - disse Juán, a voz embargada, mas firme.
- Para sempre - respondeu Juca, e os olhos dele brilhavam com algo novo. Não amor romântico. Mas amor verdadeiro.
E então, com um último olhar de respeito mútuo, entraram. E desapareceram.
*A Consciência da Mina falou…*
- “Todos foram convocados para este lugar com um propósito.
Mas só os que forem Verdade… Serão Luz.
O Arco-Íris não nasce da cor - nasce da Fractura.
Quando tudo se quebra, a Luz revela-se inteira.”
*Em outro plano, no Universo da Narrativa…*
Arcanus observava o Olho de Hórus a girar com um misto de fascínio e fúria. As páginas flutuantes da sua biblioteca cósmica tremiam, como se o próprio Tecido da Criação estivesse a reagir àquilo que ele não conseguia mais controlar.
Eyden, sentado num trono desleixado feito de tinta derramada e palavras rasuradas, ria-se baixinho.
- Olha para ti, velho escriba… Achavas mesmo que podias reescrever o Destino e controlar todos os portadores da Luz?
Arcanus apertava a Pena Dourada na mão, mas esta recusava-se a escrever.
- Eles estão a escapar-me - murmurou. - A Narrativa... Deixou de me obedecer. Está a tornar-se… Autónoma.
Eyden inclinou-se para a frente, com os olhos a brilhar de malícia.
- Não é que deixaste de escrever, Arcanus. É que já não te querem como Escritor.
Arcanus virou-se lentamente para o Infinito Espelho à sua frente. No reflexo, não via mais a figura imponente do Criador. Via apenas um homem... Um homem fragmentado entre o Poder e o Medo.
- Talvez… Talvez este sempre tenha sido o meu teste - sussurrou. - Ser digno… De deixar ir.
*Nas minas…*
As paredes tremiam. O Olho de Hórus começava a girar lentamente, como se despertasse.
Nicolás estava diante de uma figura que tinha o seu rosto… Mas os olhos de Eyden. O reflexo sorria, carregado de um sarcasmo velho como o Caos.
- Sabes que, no fundo, sempre quiseste mais do que ser um canal. Quiseste escrever a tua versão da história. Ser o centro. O Criador.
Nicolás ergueu o queixo. Havia firmeza nos olhos, mas sem rigidez. Ele já não era um discípulo. Era um Mestre de si mesmo.
- Todos querem ser ouvidos. Mas poucos querem escutar. Eu escutei. Aprendi. Agora, é tempo de agir.
O reflexo ergueu uma pena negra.
- Então… Escreve. Mas escreve com a tua Essência. Sem te esconderes atrás do Amor, do Medo ou da Memória.
Nicolás estendeu a mão e a pena brilhou - mas não era negra, era translúcida, feita da mesma luz que corria nas veias da mina. Ele escreveu no ar, e as palavras flutuaram como chamas:
“Eu sou o portador da história que não me pertence.
Eu aceito ser ponte, mesmo que nunca chegue do outro lado.
Eu guio, mesmo que não me sigam.
Eu ilumino, mesmo que me consuma.
Porque a Luz…
… Não espera ser compreendida.
Apenas revelada.”
O reflexo desapareceu, como pó que regressa à origem. E Nicolás atravessou o véu com o coração em chamas - não de saudade, mas de missão.
Lauriel, por sua vez, enfrentava a sua mãe - uma visão espectral feita de poeira e hieróglifos vivos. Ela falava com a voz do Passado:
- A tua luz só brilha porque escondes a tua sombra, filha.
Lauriel sorriu, mas os olhos ardiam.
- A minha luz brilha porque fiz as pazes com ela. E tu, mãe? Foste inteira, ou apenas perfeita?
A imagem vacilou. E Lauriel avançou, fundindo Luz e Sombra num só passo.
Quando atravessou o Véu, já não era apenas uma Sacerdotisa - era uma Guardiã Ancestral reencarnada. A sua aura expandia-se, como se todas as memórias das suas vidas passadas se unissem num só ponto. O Tempo já não a dividia.
O Olho de Hórus abriu-se por completo.
Luz arco-íris irrompeu do núcleo da mina, subindo em espiral até aos Planos Invisíveis da Realidade. E Aion, pela primeira vez desde o colapso…
…Ergueu o olhar e respirou.
E então, o silêncio tornou-se prenúncio.
Porque a Luz ia falar.
Mas não ainda.
[Continua...]