Capítulo 32
Dentro das minas, a escuridão era densa e a tensão crescia a cada passo. Lúcia e Rodrigo, separados do resto do grupo pela derrocada, caminhavam com cautela pelos túneis estreitos, iluminados apenas pela luz bruxuleante de uma lanterna velha que Rodrigo encontrara entre os destroços.
- Que merda... Estamos presos aqui! - murmurou Rodrigo, tentando manter a calma.
Lúcia olhou para ele com preocupação, tentando esconder o medo.
- Há sempre uma saída... - disse, tentando manter a esperança.
Enquanto avançavam, os ecos de vozes distantes reverberavam pelas paredes. De repente, Lúcia comentou, meio sem pensar:
- Nunca conheci o meu pai... A minha mãe sempre me disse que ele a deixou, antes de eu nascer. Ela vive na Suíça agora.
Rodrigo parou, como se tivesse levado um soco no estômago.
- Suíça? - perguntou, com a voz ligeiramente trémula.
- Sim. Ana. A minha mãe… Chama-se Ana Martins. Ela sempre me disse que o meu pai era um jovem aventureiro sem rumo, mas... Nunca contou muita coisa sobre ele. Ela partilhou que eles viveram algo bonito no Douro vinhateiro, os pais dela não gostaram quando descobriram e depois ele desapareceu.
Rodrigo sentiu o mundo girar. Ana. Suíça. Vinte e dois anos atrás... A lembrança veio com a força de um trovão. A mulher com quem passara um Verão intenso e inesquecível antes de… Antes de Ana partir misteriosamente. Mais tarde Rodrigo viera a descobrir que Ana tinha ido para a Suíça, mas desconhecia porquê.
- Espera... - Rodrigo murmurou, virando-se para Lúcia. - Quantos anos tens?
- Vinte e um. - Lúcia respondeu, sem entender o motivo da pergunta.
Rodrigo deixou a lanterna cair, o coração acelerado.
- Oh meu Deus...! - sussurrou. - Ana Martins...? Se for quem eu penso… e as histórias batem certo… Eu... Eu conheci a tua mãe!
Lúcia franziu a testa, surpresa.
- Como assim?
- Há vinte e dois anos... Eu estava numa quinta, no Douro Vinhateiro... E vivi um amor com a mais linda mulher que já conheci na minha vida! Ela era uma mulher chamada Ana Martins... Ela... Desapareceu misteriosamente. Ela nunca disse que estava grávida.
Os olhos de Lúcia arregalaram-se enquanto a ficha caía.
- Não... O Rodrigo está a dizer… Está a dizer que... Você é o meu pai?!
Rodrigo não conseguiu responder. Um turbilhão de emoções colidiu dentro dele, e lágrimas brotaram nos seus olhos. À medida que olhava com mais atenção para Lúcia, ia percebendo cada vez mais semelhanças com aquela mulher que um dia arrebatara o seu coração!
- Acho que sim... - murmurou, tocando o rosto de Lúcia com cuidado. - Eu... Eu nunca soube! Perdoa-me!
Os dois abraçaram-se, sentindo um alívio inesperado misturado à confusão! Afinal, algum tempo antes, tinham-se envolvido no quarto de Rodrigo!
Lúcia sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha enquanto as palavras de Rodrigo se assentavam na sua mente como pedras pesadas. O rosto dele estava contorcido numa expressão de dor e arrependimento, e os olhos marejados reflectiam o turbilhão de sentimentos que o consumia.
Não...! - recuou, como se fugisse da verdade.
Rodrigo esfregou as mãos no rosto, tentando processar o que acabara de descobrir.
- Eu... Eu nunca soube... - balbuciou, num tom quase inaudível. - Ana... Ela nunca me contou... Ela desapareceu, antes de eu sequer imaginar...
Lúcia cruzou os braços, sentindo uma náusea inesperada. A revelação atingira-a como uma avalanche, esmagando todas as certezas que carregava consigo. Sentia-se suja, traída pelo Destino, incapaz de olhar para Rodrigo sem sentir um nó na garganta.
- Tu... Tu és o meu pai? - repetiu, a voz embargada, como se esperasse que ele negasse, que dissesse que era um engano.
Rodrigo assentiu, os olhos cravados no chão, incapaz de encará-la.
- Acho que sim... - murmurou.
A voz falhava.
- Eu... Não consigo acreditar...
O silêncio que se seguiu foi denso, sufocante. A mina parecia ainda mais estreita, como se as paredes se movessem para os esmagar. Lúcia segurou-se numa viga de madeira, respirando com dificuldade, enquanto a mente revivia os momentos em que estivera com Rodrigo, os toques, os beijos, os sussurros íntimos que agora soavam como uma profanação.
- Meu Deus... - sussurrou ela, deixando que as lágrimas corressem pelo rosto. - Eu... Estive contigo…
Rodrigo sentiu um arrepio gélido percorrer-lhe a espinha ao ouvir aquilo. A verdade era insuportável. Lúcia, a mulher que ele tanto admirara pela coragem e determinação, era sua filha! E ele, sem saber, permitira que algo inominável acontecesse entre eles!
- Eu não sabia... - repetiu, como se aquilo pudesse amenizar o horror que ambos sentiam. - Se eu soubesse... Nunca teria...
Lúcia apertou os braços contra o corpo, como se quisesse esconder-se da Realidade que agora os confrontava. O choro tornou-se mais intenso, e Rodrigo não sabia o que fazer. Aproximou-se, hesitante, querendo confortá-la, mas o peso da culpa esmagava-o.
- Lúcia... - tentou dizer, mas ela levantou a mão, pedindo que ele não falasse.
- Por favor... Não agora... - soluçou. - Só... Só deixa-me pensar...
Rodrigo assentiu, recuando, respeitando o espaço dela. Sentia-se enjoado, como se o chão sob os seus pés tivesse desaparecido. Queria encontrar as palavras certas, algo que pudesse ao menos aliviar o sofrimento que ambos partilhavam. Mas nada vinha.
O Tempo parecia ter parado dentro daquela mina fria e escura. O som da respiração ofegante de Lúcia misturava-se com o eco distante de água a pingar. Rodrigo queria voltar atrás, impedir que tudo aquilo acontecesse, mas o Destino fora cruel.
De repente, Lúcia ergueu o rosto, os olhos vermelhos de tanto chorar.
- O que fazemos agora? - perguntou, a voz trémula.
Rodrigo balançou a cabeça, perdido.
- Não sei... - admitiu, com um suspiro pesado. - Mas... Vamos sair daqui primeiro. Temos que sobreviver... Depois... Depois vemos como lidar com isso.
Lúcia assentiu, tentando recompor-se. Mesmo que o choque não tivesse passado, precisava de encontrar forças para continuar. O perigo ainda os cercava, e morrer ali não resolveria nada.
Rodrigo estendeu-lhe a mão, hesitante. Por um instante, ela hesitou, mas acabou por segurar, com delicadeza. O toque não era mais o mesmo. Agora, cada movimento trazia uma angústia latente, uma dor que não saberiam como apagar.
Juntos, ainda que dilacerados pela verdade, avançaram pela mina. A Escuridão parecia gozar com o dilema deles, como se o Destino estivesse a rir-se de uma piada cruel.
Enquanto caminhavam, Lúcia fechou os olhos por um instante, tentando lembrar-se do rosto da mãe. Será que Ana sabia? Teria fugido? Estaria rodrigo a dizer a verdade? Será que ela escondera a verdade de propósito? As perguntas formigavam-lhe a mente, mas ela sabia que precisava manter o foco. Não poderia permitir-se fraquejar ali.
Rodrigo sentia-se um fantasma de si mesmo. O que antes era uma busca por sobrevivência agora tornava-se um caminho de redenção. Precisava de proteger a Lúcia, mesmo que ela nunca pudesse perdoá-lo. Mesmo que ele nunca pudesse perdoar-se.
O que faria quando encontrassem os outros? Contariam? Ocultariam para sempre o que descobrira? As dúvidas eram como espinhos cravados na carne. Rodrigo sabia que nada seria como antes, mas não tinha escolha. Precisavam de seguir em frente, mesmo sabendo que, agora, mesmo saindo da mina, nunca mais estariam livres daquele fardo.
*Nas profundezas da mina…*
Lauriel e Nicolás avançavam por outro túnel, guiados pelas Runas Ancestrais que brilhavam nas paredes. Nicolás mantinha-se atento aos sinais, enquanto Lauriel sentia uma conexão crescente com o lugar.
- As forças aqui estão desalinhadas... Algo perturbou a Essência da Mina… - comentou Lauriel, com os olhos a brilhar em tons dourados.
- Será que isso tem a ver com o colapso da Narrativa? - questionou Nicolás.
- Pode ser. Se Aion realmente foi derrotado, isso compromete a estrutura de tudo o que conhecemos. Mas...! Se conseguimos restaurar a sua força vital, talvez o Equilíbrio possa ser restabelecido!
- Mas como? - Nicolás franziu a testa.
Lauriel suspirou, tocando o talismã no pescoço.
- Precisamos de encontrar um Artefacto Primordial. Algo que possa canalizar a Energia Narrativa directamente para Aion. Eu tenho um pressentimento de que o que procuramos estará nesta mina.
Nicolás assentiu, determinado.
- Vamos encontrar isso e trazer o nosso querido Aion de volta! Sem ele nada disto seria possível!
Lauriel fechou os olhos por um instante, permitindo que a energia da mina fluísse pelo seu corpo como uma corrente eléctrica. Havia algo antigo ali, uma pulsação rítmica que vibrava com o seu próprio Poder Interior. Quando abriu os olhos novamente, eles brilhavam como ouro líquido.
- Aion não pode ser restaurado com objectos comuns - disse ela, a voz suave, mas firme. - Precisamos de algo que carregue a Essência Primordial. E se estamos na Mina dos Diamantes da Meia-Noite... Talvez possamos usar os próprios diamantes!
Nicolás arqueou uma sobrancelha, intrigado.
- Como assim? Queres usar o nosso poder nos diamantes?
Lauriel olhou para as paredes cobertas de Runas. Alguns símbolos eram familiares, pareciam fragmentos de um Antigo Ritual Egípcio.
- Ora… Tu sabes bem que os diamantes aqui não são apenas minerais comuns - explicou ela, aproximando-se de uma abertura no chão que revelava pequenos cristais azulados. - Eles têm uma ligação directa com a Matriz da Realidade.
Nicolás sorriu.
- Sim, é verdade. Eles são fragmentos do primeiro Brilho da Criação. Se canalizarmos a nossa Magia neles, podemos criar um Fluxo Contínuo de Energia Narrativa. Mas aí… Vamos estar a abusar dos nossos poderes! Poderemos criar um grande veio de Diamantes Arco-Íris! E tu sabes o que precisamos para os criar! Temos de incinerar seres humanos para o fazer!
Lauriel ponderou, tentando compreender a grandiosidade do que Nicolás dizia.
- Mas Aion não é apenas um Narrador... Ele é o Eixo da história. Se ele for destruído, tudo começa a desfazer-se. Precisamos de garantir que a Energia seja Pura e não contaminada pela Corrupção deste lugar!
Nicolás concordou, observando atentamente os cristais.
- Precisamos escolher um diamante que ainda não tenha sido tocado pelo Caos. Um que mantenha a essência original intacta. A essência do nosso pai, Hórus!
*Muito longe dali Arcanus, Eyden e a misteriosa mulher observavam a cena - cada um num determinado local do Universo da Narrativa, totalmente cativados!*
- Isto… Ainda é melhor do que eu poderia conceber!! - congratulou-se Arcanus. - Eles vão restaurar o Aion! Eles são filhos de Hórus!
Eyden não entendia a alegria de Arcanus. Já a mulher esfregava as mãos de contente e controlava-se para não desatar a rir às gargalhadas!
*De volta à mina…*
Os dois avançaram pelo túnel, enquanto a energia mágica de Lauriel ressoava com as pedras ao redor. Nicolás carregava uma adaga ritual presa ao cinto, presente do pai, Hórus, e sentia que a lâmina também pulsava com um brilho esverdeado.
- O poder dos diamantes precisa de ser catalisado com um sacrifício voluntário - declarou Lauriel, como se lesse os pensamentos de Nicolás. - Não precisa de ser vidas humanas, embora fosse o ideal… Mas... Talvez um fragmento da nossa própria Força Vital sirva o propósito.
Nicolás hesitou.
- Se fizermos isso, estaremos vulneráveis, Lauriel.
Eu sei. Mas Aion é nosso aliado, Nicolás! E se ele cair, Arcanus dominará a trama por completo. Precisamos de arriscar! É o tudo ou nada!
Os dois chegaram a uma câmara muito ampla, onde um diamante maior brilhava no centro, envolto por uma teia de raízes cristalinas. Lauriel estendeu a mão, sentindo a pureza da pedra.
- Este é o escolhido! - afirmou.
Nicolás aproximou-se, retirando a adaga do cinto.
- Vamos fazer isto juntos.
Lauriel sorriu, encorajando-o.
- Coloca a lâmina sobre o diamante e concentra-te na conexão que temos com Aion. Eu farei o mesmo.
Ele obedeceu, posicionando a adaga enquanto Lauriel se ajoelhava ao seu lado. Ela começou a entoar palavras numa língua antiga, um cântico que falava de Equilíbrio e Renascimento, enquanto deixava algo líquido e espesso, que vinha de dentro da sua caverna, cair sobre a adaga do irmão. A adaga começou a brilhar intensamente, e Nicolás sentiu a sua energia vital ser drenada aos poucos. Não tardou para ele mesmo sacar o seu ceptro e, em nome do seu pai, soltar o seu precioso néctar, ali mesmo, sobre o diamante, misturando-se assim os dois líquidos.
De repente, um feixe de Luz Dourada e Esverdeada irrompeu do diamante, espalhando-se pela mina como um Rio de Vida. Lauriel sentiu a energia fluir para Aion, que estava em algum lugar Para Além do Tempo e do Espaço, na linha ténue entre a Existência e o Esquecimento.
- Está a funcionar! - exclamou Nicolás, segurando firme a adaga e recolhendo o seu precioso ceptro.
Mas então, um tremor percorreu a mina, e as Runas nas paredes começaram a brilhar, em tons de vermelho-escarlate. Lauriel abriu os olhos, alarmada.
- Não estamos sozinhos. Algo está a tentar impedir o Ritual Ancestral!
No fundo da câmara, uma sombra tomou forma, revelando-se uma figura encapuzada que os observava com olhos famintos.
- Vocês não podem trazê-lo de volta! - sibilou a figura. - O Caos já reina aqui!
Lauriel levantou-se, protegendo o diamante enquanto Nicolás erguia a adaga.
- Quem és tu? - perguntou ele, tentando manter a voz firme.
A figura riu-se, e a câmara pareceu escurecer.
- Eu sou a voz do Caos. O Equilíbrio já não existe! O poder dos diamantes arco-íris será meu!
Lauriel concentrou a sua magia, fazendo as Runas ao redor brilharem com intensidade.
- Tu não entendes! - respondeu ela, com firmeza. - O Poder do Equilíbrio não pode ser dominado pela Força Bruta. Ele nasce da Harmonia!
A figura riu-se novamente, mas antes que pudesse atacar, uma onda de luz explodiu do diamante, atingiu o encapuzado, fazendo-o dissipar-se instantaneamente. Nicolás sentiu a energia regressar, e a lâmina da adaga voltou ao normal.
- Conseguimos? - perguntou ele, ainda com o coração acelerado.
Lauriel assentiu, ofegante.
- Aion está a acordar. Podemos sentir o seu poder restaurando-se aos poucos. Mas precisamos continuar em frente! Esta mina… Guarda muitos segredos... E mais perigos!
Nicolás guardou a adaga, sentindo-se mais leve.
- Vamos, então! A trama ainda não terminou!
Os dois continuaram a avançar, com a certeza de que Aion, mesmo em recuperação, estaria do lado deles na luta contra o Caos. Mal sabiam eles que os próximos passos seriam ainda mais arriscados, pois o Equilíbrio da Narrativa ainda estava por um fio.
*No Universo da Narrativa...*
Eyden segurava a Pena Mágica novamente. Ele escrevera aquela parte da figura encapuzada e assistira ao desenrolar dos eventos com um sorriso sinistro. Arcanus, ao seu lado, começava a questionar a própria decisão de eliminar Aion.
- Não vês, Eyden? Não percebes? Sem o Aion, não há Enredo, só Caos. E eu não consigo controlar isso. E… Muito menos tu! Tu não passas de uma Criação minha!
Eyden riu-se, saboreando a Desordem.
- A Ordem é uma Ilusão, Arcanus. A Narrativa agora respira Livre. Está VIVA!! Assim como eu ficarei!
A mulher misteriosa observava-os de longe, satisfeita com o rumo dos acontecimentos.
- Awwww! Eles ainda não perceberam que o verdadeiro perigo não é o Caos... Mas a Imprevisibilidade Pura! - sussurrou ela.
[Continua...]