31 março 2021

Escrito nas Entrelinhas: Parte 2 ~ Capítulo 9

 


Capítulo 9




Uma voz seca respondeu ao telefone, após alguns instantes de silêncio:

- Director Hudges, esta investigação pode tornar-se perigosa para a doutora Shappa. Sugiro que a retire da investigação… Ela tem de cuidar dos filhos… E pelo que vejo nas fotos que me enviou, parece-me que o recado foi direccionado a ela…

Hudges afastou-se do local e ripostou, em voz baixa:

- Por isso mesmo é que é ideal que ela se mantenha no activo. Assim, é da maneira que a mantemos debaixo de olho e a vamos controlando… Mais a mais, duvido muito que ela aceite sair da investigação depois do que descobriu… O Michael andou a abusar dos filhos dela… Ela descobriu e o resto do país não tardará a saber, porque quem o matou, avisou que iria mandar para televisões do país todo!

- Sim, eu já sabia desses abusos. O Michael tinha esse “problemazinho” … Fora isso, era um bom profissional. Nunca recusou trabalho algum e prestou bastantes serviços ao nosso grande país. Eu vou mexer uns cordelinhos, mas não prometo nada… Se a notícia foi enviada para o país todo, é provável que seja uma questão de tempo até rebentar o escândalo na Internet…

- Isso seria muito convincente para quem nós sabemos, não é? - riu-se Hudges. - Afinal, é só mais um pretexto para levarmos o nosso plano avante…

- De facto, assim é. Espero que me mantenha a par de tudo o que se anda a passar, está bem? Conto consigo, Hudges! Bom trabalho, já agora!

A chamada foi desligada antes de Hudges poder despedir-se. Guardando o telemóvel no bolso, ele aproximou-se da equipa que estava a fazer recolhas no local e questionou-os:

- Então? O que acham? Descobriram alguma coisa digna de registo?

Shappa apresentou as primeiras notas que tinha:

- Pelo estado e rigidez do corpo, o doutor Michael deverá ter morrido entre as 3 e as 5 horas da madrugada. Ainda é cedo para tirar conclusões, mas descobri uma marca de injecção no pescoço, na veia jugular. É provável que o doutor Michael tenha sido atacado de surpresa, por detrás, com uma droga suficientemente forte para o deixar inconsciente, rapidamente. Para além disso, as outras marcas de seringas e mutilações, sugerem alguém que sabia que podia agir com tempo e com calma. As minhas primeiras suspeitas vão para alguém com vastos conhecimentos de medicina. Quem o matou, sabia onde tinha de injectar as seringas a fim de prolongar o sofrimento, mantendo-o vivo.

Hudges anotava algumas coisas e de repente olhou para Shappa, que estava concentrada a tentar achar impressões digitais no computador.

- Você está a dizer que o Michael estava vivo quando foi mutilado?

Shappa e a equipa forense acenaram afirmativamente com a cabeça.   

- Bom, eu vou levar as informações comigo. Recolham as impressões que conseguirem. Doutora, vejo-a daqui a pouco no posto de comando, está bom? Venha directamente para lá. Neste momento, toda a cidade está sob suspeita e isso incluí os seus familiares!

Shappa levantou-se, indignada:

- Desculpe? Você está a insinuar que o meu marido ou os meus filhos possam ter cometido um crime tão atroz? Quem é que me garante que não foi alguém do próprio FBI?

O Director Hudges pegou num cigarro e levou-o à boca. Preparava-se para acendê-lo, quando o telefone dele voltou a tocar.

- Falaremos melhor sobre isto mais tarde, doutora. Compreendo a sua indignação, mas tenha cuidado com o que diz ou será suspensa de funções!

Shappa ficou furiosa! Apetecia-lhe dizer poucas e boas ao seu chefe, mas sabendo os riscos que corria, controlou-se! Virando costas, foi procurar pistas pelo resto da casa. Quanto a Hudges, este saiu da casa de Michael a falar em tom jovial com o Presidente dos Estados Unidos da América, garantindo-lhe que tudo estava bem e explicando o que se andava a passar. Não tardou para entrar no seu carro e partir a grande velocidade.


*24 de Junho, 14:00*



·


A notícia da morte macabra de Michael chegou a televisões de todo o país. Em Nova Iorque, uma figura estava imersa nas sombras, sentada numa poltrona, enquanto saboreava um generoso copo de whisky, degustando cada gole com grande prazer.

Na televisão, a fanfarra anunciava o Jornal das 14 horas. Uma jornalista, chamada Josephine Sawyer, apareceu no ecrã. Com um sorriso, principiou o bloco informativo.  


Josephine Sawyer


- “Olá senhores telespectadores, muito boa tarde! Iniciamos as notícias de hoje com uma notícia de última hora. A pacata cidade de Grace Falls, que fica na fronteira entre o Estado da Dakota do Sul e o Estado do Nebraska, foi esta madrugada alvo de um homicídio de grande violência. Segundo pudemos apurar, a vítima era um médico que exercia Medicina Geral e prestava apoio geral no Hospital de Grace Falls. O nome dele era Michael Connors, tinha 28 anos e foi vítima de uma morte de extrema violência. Segundo relatos da polícia local, o médico foi decepado, os seus órgãos genitais foram mutilados e ao que tudo indica, quem o matou ainda deixou uma mensagem enigmática, numa parede. A nossa televisão, bem como televisões de todo o país, receberam algumas imagens, imagens essas demasiado violentas para serem passadas a esta hora. Recebemos também uma fotografia da mensagem enigmática deixada pela pessoa que assassinou o doutor Michael.

O rosto de Josephine deu lugar a uma fotografia.




Ao ver a fotografia, a figura que estava sentada na poltrona engasgou-se. Engasgou-se de tal forma que o copo de whisky caiu ao chão, partindo-se com estrondo.

- Foda-se! - gritou, com voz irritada.

Josephine voltou a aparecer na televisão, enquanto o vulto se levantava, resmungava impropérios e recolhia os estilhaços do copo. Josephine continuou:

- “A estação de televisão da cidade de Grace Falls, a GFNews, anunciou ontem à noite que o doutor Michael, uma das figuras mais acarinhadas da cidade, apesar de ter chegado à mesma há pouco mais de um ano, estava envolto num esquema de pedofilia. Supostamente, o doutor envolvia-se com jovens menores de idade, pagando-lhes bebidas e aliciando-os para terem sexo com ele. Nós recebemos vários ficheiros enviados pela pessoa que supostamente matou o doutor Michael e, por uma questão de privacidade, não as iremos colocar no ar. No entanto, eu já vi as imagens e vídeos e posso garantir aos senhores telespectadores que o prezado médico tinha uma quantidade considerável de pornografia infantil consigo. Temos em directo, via telefone, o Chefe-Comissário da Polícia de Grace Falls, Henry Larson. Boa tarde Senhor Comissário! Como está a situação por aí?

- “Olá boa tarde, Josephine! Olá boa tarde a todos os senhores telespectadores. A situação por aqui está um pouco mais calma, agora. Assim que soubemos das notícias, esta madrugada, nós começamos logo a preparar uma operação para deter o doutor Michael. Infelizmente, sabe como é, estas coisas levam o seu tempo e não podemos dar-nos ao luxo de prender pessoas sem provas…

- “Mas diga-me, a notícia não era fiável? Não acreditaram nas provas que tinham visto na televisão GFNews?

- “Sim, quer dizer… Nós ficamos de pé atrás... A notícia parecia demasiado escabrosa para ser real! Assim, tivemos de chamar a Polícia Local de San Lynch, explicar-lhes o que se estava a passar.... Você deve saber como é…. É um processo burocrático… Muitas vezes, leva mais tempo do que aquele que desejaríamos! Depois fomos à discoteca. Mas… Em primeiro lugar está a presunção de inocência dos nossos civis!

Josephine parecia surpreendida pelo discurso de Henry. Com um sorriso, questionou:

- “Vocês chegaram à discoteca e depois?

- “Após termos tudo acertado, a nossa equipa e a equipa da Polícia de San Lynch, fizeram buscas e detenções na discoteca. Detemos pessoas por posse de drogas ilegais e comprimidos! Pedimos também as imagens das câmaras de videovigilância do espaço que, entretanto, foram recolhidas por membros do FBI.

- “Está a dizer-me que o FBI já se encontra a investigar o caso?” - inquiriu Josephine, com ar surpreendido!

- “Segundo o que pude apurar, sim, até porque o doutor Michael era um agente infiltrado do FBI…

Henry Larson tem um súbito ataque de tosse e passou o telefone a outra pessoa.

- “Desculpe senhora jornalista, mas o nosso Comissário não poderá continuar a falar, passe bem! Boa tarde!

- “Desligaram a chamada? A sério?” - questionou-se Josephine, esquecendo-se por momentos que ainda se encontrava em directo.

A emissão foi para intervalo, segundos depois. A figura misteriosa deitava os estilhaços do copo no lixo, enquanto resmungava entredentes. Quando se sentou, pegou no seu telemóvel e enviou uma mensagem. 


*Enquanto isso, em Grace Falls…*


- Caramba, tu já sabes o que aconteceu? Que final horrível que teve o médico! - cochichavam pessoas, no mercado da cidade.

- É muito bem feito! - respondiam outras, quando o assunto vinha à baila.

Em casa dos Sullivan e dos Chayton, a notícia foi recebida com choque. No entanto, tanto Eddie como Chayton revelaram-se bastante calmos perante a notícia e reagiram até com alguma ligeireza.

- Ele só teve aquilo que merecia… - comentou Eddie.

- Aiii, pai! Cruzes-credo! Que descanse em paz! - exclamaram Bianca e Laura, benzendo-se. 

- Meninos, vocês já sabem que os nagi tanka não perdoam a pessoas assim tão más. Este médico provocou a fúria deles! - comentou Chayton.   

- Que o wasichu descanse em paz! - exclamaram Takoda, Cetan Nagin, Maȟpiya Lúta, Siha Sápa, Wakinyan. 

Matoskah fez um grunhido. Parecia satisfeito. Chayton apercebeu-se disso.

- Filho, eu sei que tu e o Jules eram muito próximos. Mas daí a regozijares-te com a morte de um ser vivo? Isso não é bom, nem é digno de ti!

O filho olhou para o pai, olhos nos olhos. Corou bastante e os seus olhos encheram-se de lágrimas. Chayton abraçou-o.

- Eu sei filho, eu sei. Estás revoltado com tudo isto! É natural! O Jules não merecia ter partido deste Mundo tão cedo! Talvez aquele médico tenha sido um dos causadores disso! Mas, pensa assim: pelo menos agora, a alma do nosso Sunka poderá descansar, finalmente, em paz.

Entre choros e uivos, Matoskah acenou com a cabeça. Chayton afagou os cabelos do filho e disse, com voz gentil:

- Acho que está na hora de aceitarmos a proposta que o Grande Chefe nos fez. Vai fazer-vos bem sair deste ambiente nocivo. Assim que a vossa mãe chegar, eu vou falar com ela sobre isso… Tenho a certeza de que ela concordará comigo!

- Boa ideia! - exclamou Wakinyan, com um sorriso.

A perspectiva de abandonarem a cidade e regressarem à Reserva animou-os. Passaram o resto do dia a preparar as coisas que queriam levar consigo.


*25 de Junho de 2017*


Shappa finalmente tivera oportunidade de regressar a casa, após inúmeras horas de volta do corpo de Michael. Depois de receberem o resultado da autópsia, ela obteve ordem para retornar a casa e descansar um pouco. Tomou um bom banho e foi deitar-se, na companhia de Takoda e Matoskah, que ficaram muito felizes de poderem dormir com a mãe.


·


*26 de Junho de 2017*


Bianca finalmente tomou uma decisão. Desde que regressara a Grace Falls, ainda não tinha tido a coragem para entrar no quarto do irmão. Este mantinha-se fechado à chave desde o dia em que Jules se suicidara. Depois de tudo o que acontecera, Bianca achou que talvez encontrasse alguma pista no quarto do irmão. Esperou pacientemente que ninguém estivesse em casa para fazê-lo. Receava perder a coragem se alguém a apanhasse. Assim, quando se apanhou com a casa vazia naquela manhã, ela aproveitou.

Rodou a chave da porta muito devagarinho. Abriu a porta, com medo de ser surpreendida. Para seu espanto, o quarto estava com a janela aberta - provavelmente Maurice vinha ali abrir a janela para deixar entrar o sol e o quarto apanhar ar. Fora isso, o quarto de Jules parecia estar como Bianca sempre o conhecera: a cama por fazer, livros espalhados pelo chão, roupa ao fundo da cama, cadernos com desenhos e escritos pousados em estantes e também na secretária onde estavam os computadores do irmão.

Ela não sabia por onde começar.

Bianca pegou em fotografias que o Jules tinha espalhado pelo quarto, enquanto chorava, cheia de saudades dele. O irmão estava sempre feliz e sorridente nas fotografias. Bianca questionava-se sobre o que teria levado o Jules a suicidar-se. Ele sempre fora bonito e popular entre as raparigas. Sabia que ele inclusive por vezes recebia galanteios de rapazes, que recusava de forma muito subtil. Então, o que lhe teria acontecido?

Estava ela entretida a verificar as estantes com livros, quando se deparou com um caderno de capa dura que lhe chamou a atenção. Ao retirá-lo da estante, apercebeu-se que este tinha um cadeado. Era um diário! Intrigada, Bianca sentou-se na cama de Jules. Não resistiu a pegar na almofada e abraçou-se a ela. Ainda tinha o cheiro dele, embora ténue. Intrigada, verificou que o cadeado tinha uma combinação de 4 números. Curiosa, ela experimentou várias combinações, para tentar abrir o diário, mas nenhuma delas fazia o “click!” necessário!

De repente, Bianca ouviu um carro a parar. 

Os pais tinham chegado. Levantou-se apressadamente, pegou no diário e no computador portátil, já que o outro computador era um computador de secretária. Saiu, fechou a porta à pressa e correu para o seu próprio quarto, onde guardou o diário e o portátil de Jules debaixo do colchão. 

Os pais entraram em casa, na companhia de Maurice. Bianca desceu as escadas a correr, sorrindo nervosa. Esperava que os pais não se apercebessem de nada.

- Então Bianca, já tomaste o café da manhã? - perguntou Laura, dando dois beijos à filha.

- Não, mãe! Estava à vossa espera!

- A esta hora, mais vale beberes um copo de sumo! A Maurice não tarda a pôr a mesa para almoçarmos! - resmungou Eddie, enquanto cumprimentava a filha.

- Ai pai, está bem! Veio algum correio para mim?

Maurice levou as mãos à cabeça.

- Ohhhhh! Não me lembrei! Esqueci-me de trazer o correio para dentro! 

Bianca riu-se, divertida.

- Oh, deixa estar, Maurice! Eu vou buscar!

E assim, Bianca correu até à caixa do correio. Estavam algumas cartas para Eddie, uma da escola onde Bianca trabalhava e uma para Laura, que não trazia remetente.

- Aqui está o correio! - anunciou, entregando as cartas aos pais e sentando-se a ler a sua.



·

Laura recebeu a sua carta com um ar surpreso. Levantando-se da mesa, foi até ao jardim para abrir a carta que recebera. Estava curiosa. Seria uma carta de amor de algum fã? Riu-se divertida, enquanto retirava a carta do envelope. Alguém tinha escrito a seguinte mensagem:

Laura,
Eu sei o que tu fizeste.
Eu sei o teu segredo.
Se falares disto a alguém, haverá consequências.
Voltarei a contactar-te.

Assustada, Laura reprimiu um grito. 

Ela leu e releu várias vezes aquela missiva, pensando tratar-se de uma brincadeira de muito mau gosto. Depois de se acalmar, verificou o envelope, em busca de pistas. O carimbo da carta estava ilegível, mas aparentemente, a carta tinha sido enviada no dia anterior. Infelizmente, não dava para perceber se tinha sido enviada de Grace Falls ou de outra cidade. Com um longo suspiro, Laura amarfanhou a carta e depois, pensando melhor, guardou-a no seu regaço. 

Todo o cuidado era pouco...


[Continua....]

4 comentários:

  1. Sempre bom em suas histórias e narrativas ... emoções que seguem dia a dia.

    Beijos

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá Paulo!
      Eu tento que as histórias sejam interessantes e cativantes! Fico feliz que estejas a accompanhar!
      Abreijos :)

      Eliminar
  2. Aqui estou eu, encantado com as tuas histórias

    ResponderEliminar