17 outubro 2021

Escrito nas Entrelinhas: Parte 3 ~ Capítulo 9

Com a chegada de novos leitores, deixo-vos a sinopse e o trailer da novela que está actuamente a ser postada aqui no blog!

Uma promessa inquebrável. Um amor que supera a morte! 
Este é o mote de partida para as últimas peças do puzzle que se iniciou na saga “Vírgulas do Destino”! Nesta história, os leitores acompanharão Shade, que está decidido a cumprir a promessa que o irmão lhe deixou! Conseguirá ele ser bem-sucedido? Enquanto isso, um novo pesadelo assola a cidade de Nova IorqueEstará a Mão Divina de regresso?




Podem ler os capítulos anteriores desta novela e/ou outras histórias, clicando aqui




Capítulo 9

ACTO QUARTO: REGRESSO A CASA





Se um dom especial é dado pr'a alguém
É pra ajudar o bem,
Na luta contra o mal!

É como a luz do sol
Que toca um cristal,
E em sete cores mostra assim, 
Que tudo é natural!

É como o som do mar, 
Que vem nos alcançar!
Pra nos mostrar o amor,
O amor que existe além do olhar...

O amor que existe além...
Do Olhar!


Noah ficou no cais até o comboio desaparecer lá ao longe, na linha do horizonte. Shade fora uma surpresa muito especial. O facto de ser filho de um pai bilionário era um bónus inesperado! Com um suspiro melancólico, Noah foi avançando lentamente, pé ante pé, até ao carro. Ainda sentia no ar o cheiro de Shade. Não queria esquecer aquele cheiro. 

Suspirou. 

Noah estava certo de que não voltaria a ver Shade tão cedo. Por outro lado, o pai dele talvez quisesse vir conhecê-lo pessoalmente! Dessa forma, Noah teria novamente a oportunidade de estar com aquele ruivo que lhe dera a volta à cabeça! Depois de entrar no carro, conduziu sem destino. Estava triste. Ligou o rádio, onde uma locutora anunciou:

- “A pedido de vários ouvintes, vamos escutar o lindíssimo tema de Biafra… Sonho de Ícaro!



[Biafra]

Voar, voar
Subir, subir
Ir por onde for
Descer até o céu cair
Ou mudar de cor
Anjos de gás
Asas de ilusão
E um sonho audaz
Feito um balão

No ar, no ar
Eu sou assim
Brilho do farol
Além do mais
Amargo fim
Simplesmente sol

Rock do bom
Ou quem sabe jazz
Som sobre som
Bem mais, bem mais

O que sai de mim
Vem do prazer
De querer sentir
O que eu não posso ter
O que faz de mim
Ser o que sou
É gostar de ir
Por onde, ninguém for

Do alto coração
Mais alto coração

Viver, viver
E não fingir
Esconder no olhar
Pedir não mais
Que permitir
Jogos de azar
Fauno lunar
Sombras no porão
E um show vulgar
Todo Verão

Fugir meu bem
P’ra ser feliz
Só no Pólo Sul
Não vou mudar
Do meu país
Nem vestir azul

Faça o sinal
Cante uma canção
Sentimental
Em qualquer tom

Repetir o amor
Já satisfaz
Dentro do bombom
Há um licor a mais

Ir até que um dia
Chegue enfim
Em que o sol derreta
A cera até o fim

Do alto, coração
Mais alto, coração


A ficha cai a Noah, que se apercebe que talvez nunca mais volte a ver Shade... 


Noah não resistiu. Lágrimas teimosas rolavam pelo seu rosto e teve de encostar o carro, enquanto recostava a cabeça ao volante. Por fim, caiu-lhe a ficha. Chorou como se não houvesse amanhã. Aquele tema deixara-o ainda mais melancólico e com vontade de correr atrás de Shade. Por ele, lutaria contra os seus medos e receios!


[Biafra]

Faça o sinal
Cante uma canção
Sentimental
Em qualquer tom

Repetir o amor
Já satisfaz
Dentro do bombom
Há um licor a mais
Ir até que um dia
Chegue enfim
Em que o sol derreta
A cera até o fim

Do alto, coração
Mais alto, coração

Do alto, coração
Mais alto, coração


Quando o tema terminou, Noah desligou o rádio e recompôs-se. Não podia dar parte fraca agora. Foi até casa, tomou um banho, trocou de roupa e voltou para o carro. Retirou o telemóvel do porta-luvas e deparou-se com mais de uma dezena de chamadas. Noah respirou fundo, como que a ganhar coragem. Determinado, ligou para Eddie. O telemóvel tocou várias vezes até que…

- “Edward Sullivan!” - respondeu uma voz ansiosa.

- Senhor, peço desculpas por não ter atendido mais cedo, mas eu tinha dito para me telefonar mais tarde!

- “Compreende que me deixou ansioso e nervoso, não é? Afinal, manda-me aquela bomba e espera que eu aguarde calmamente?” - resmungou Eddie, apressadamente.

- Não foi minha intenção, senhor! Não foi de todo! Mas o Shade… Bom…
  
- “Onde está ele? Está aí ao seu lado? Pode passar-lhe o telemóvel? Quero falar com ele!

Uma onda de remorsos avassalou Noah.

- Eu lamento muito, senhor Edward! O Shade não está aqui… Ele já se foi embora…

- “Foi-se embora? Para onde?

- O Shade foi-se embora para casa! Eu comprei o bilhete para ele!

- “O senhor vive onde, Noah?

- Eu sou enfermeiro no Hospital da Zona Leste da cidade de White River! Eu estive a cuidar do Shade nas últimas semanas, uma vez que ele foi encontrado inconsciente numa estrada durante uma tempestade de neve! Eu estive a cuidar dele, assumi a responsabilidade e os custos durante a estadia dele no hospital. O Shade teve alta hoje de manhã e eu vim trazê-lo ao comboio, comboio esse que partiu há algum tempo em direcção à cidade de Fargo, na Dakota do Norte!

- “Dinheiro não é problema, meu caro Noah! Você tem a certeza de tudo o que me está a dizer? Olhe que se me estiver a mentir, eu processo-o!

- Tenho a certeza sim, senhor Edward! Outra coisa, porquê que o Shade não tinha dados médicos? Tivemos de criar a ficha médica dele!

Seguiu-se um longo silêncio do outro lado da linha.

- “Ainda bem que mencionou isso. Vou querer que me envie uma cópia dos dados médicos o mais depressa possível, está bem? E os exames de ADN que lhe tiver feito! Não se preocupe que eu cubro todas as despesas que tiver de fazer! Envie-me tudo isso o mais depressa possível!

- Diga-me a sua morada…

- “Tem papel e caneta? Tome nota…

Noah pegou numa caneta e num pedaço de papel e anotou a morada que Eddie lhe transmitiu. Este apressou-se a dizer:

- “Anotou tudo? Agora diga-me o número da sua conta…. Vou-lhe transferir cinco mil dólares dentro de instantes. Depois de confirmar tudo o que me disse e eu me encontrar com o Shade, transfiro-lhe o restante. No total, se me estiver a dizer a verdade, você receberá quinze mil dólares. Essa é a recompensa que tenho para oferecer! Nada mau, hã?”   

Noah embatucou. Tanto dinheiro!

- O senhor não precisa… Eu só quero que fique tudo bem!

- “Preciso, sim! E o dinheiro nunca é demais, não é, Noah? Ah ah ah ah! Você sabe dizer-me a que horas o comboio chega à cidade de Fargo?

- Não tenho a certeza, senhor. Penso que só chega amanhã pela madrugada… Depende do estado do tempo… Mas não ouvi alertas de mau tempo, por isso…

- “Eu vou telefonar para Fargo a saber. Entrarei em contacto consigo logo que tudo esteja confirmado! Até breve, Noah! E…. Muito obrigado!

- Obrigado eu, senhor! Até breve!      

Desligaram.

Noah respirou fundo. Ficou a matutar no que faria com tanto dinheiro. Animado com a perspectiva de poder realizar um sem-número de pequenos caprichos, deslocou-se ao hospital. Lá, Noah pegou no historial clínico de Shade e fotocopiou tudo o que tinham obtido sobre ele. Em seguida, deslocou-se aos correios da cidade e enviou tudo para a morada que Eddie lhe tinha dado, em Washington. O pacote com os documentos seguiu em Correio Ultra-Expresso e Eddie receberia o valioso pacote no dia seguinte.




Após a conversa com Noah, Eddie levantou-se e entregou o número da conta à sua secretária, pedindo-lhe para que esta transferisse o valor acordado. Em seguida, este regressou ao seu escritório e marcou um número. O telemóvel tocou algumas vezes até uma voz bem-humorada atender:
 
- “Olá boa tarde, senhor Eddie! Como está?
 
- Olá Carlos! Como decorrem as buscas? Alguma novidade?
 
- “Infelizmente senhor, não tenho novidades... Já falei com várias pessoas e confirma-se que o Shade existe ou existiu, mas há muito tempo que ninguém lhe põe a vista em cima…
 
- Então prepare-se, porque eu tenho novidades para lhe dar! O Shade foi visto hoje em White River! Neste momento ele está num comboio para norte, a caminho de Fargo! Se tudo correr bem e o comboio não apanhar nenhuma tempestade de neve pelo caminho, ele deve chegar aí pela madrugada! Pode fazer o favor de estar atento a isso? Afinal eu estou a pagar-lhe bem pelos seus serviços! Não quero que volte a falhar…
 
- “Senhor, se tem garantias do que está a dizer, vou já à estação informar-me disso! Quer que aborde o rapaz?
 
- Ainda não, Carlos! Para já, quero que o siga e que me vá mantendo a par do que ele andar a fazer…. Deixe-o descansar um ou dois dias… Segundo soube, ele acabou de sair do hospital, não há-de ter forças para se aventurar por aí… Pelo sim, pelo não, siga-o como se fosse a sombra dele! Mas aja de forma discreta! Não deixe que ele se aperceba! Não quero que ele desapareça outra vez!
 
- “Está combinado senhor! Eu farei o que me pede!
 
- Muito bem, fico a aguardar notícias! Boa sorte!
 
Depois de terminar a chamada, Eddie tratou de ligar à filha, que se mostrou surpresa com as novidades.
 
- Mal posso esperar para o conhecer, Bianca! Achas que ele me vai receber bem?
 
- “Não sei, pai… Ele pareceu-me arisco, quer dizer… Nunca se deu a conhecer durante todo este tempo, não é? E a… Mãe… Também nunca falou nisto!
 
- De acordo com o que me disseste, nem o Shade sabia que tinha um irmão! Infelizmente, a única pessoa que podia responder a isso, era a tua mãe… De maneiras a que nunca poderemos vir a saber o que terá acontecido….
 
- “Pois…” - suspirou Bianca. - “Mas pelo menos agora sabemos que ele está vivo e até sabemos para onde se dirige! Bom pai, tenho de ir, depois avisa-me quando souberes novidades, está bom? Beijinhos!




Eddie percebeu, no tom de voz da filha, que esta ainda estava ressentida com a mãe por lhe ter escondido aquele segredo. Na verdade, desde que ele descobrira que a sua esposa Laura tinha tido dois filhos e abandonara um deles à sua sorte, mal dera à luz… Ele pegou numa fotografia da falecida esposa e recriminou-a com o olhar.


Quem matou Laura Sullivan? 
Esse é um dos mistérios da novela, que será revelado no grande final!


- “Como é que foste capaz de fazer aquilo, apenas para esconder uma traição?” - pensava ele muitas vezes.

Tantas perguntas que ele gostava de lhe fazer e que nunca poderia obter as respostas. Essa era, sem sombra de dúvidas, a maior insatisfação que Edward Sullivan tinha.



[Continua...]

14 outubro 2021

12 outubro 2021

Fauno Lunar #2.1

Texto da autoria de Edison Veiga para a BBC News Brasil.




"São muitos nomes, muitas "nossas senhoras". Mas elas todas se referem a uma mesma pessoa, uma mesma santa católica?

A resposta é sim. O que significa que Nossa Senhora Aparecida, cuja data se comemora em 12 de outubro é uma representação diferente da mesma santa que também pode ser chamada de Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora de Guadalupe, Nossa Senhora de Lourdes e tantas outras.

Trata-se de Maria, uma jovem judia nascida em Nazaré há pouco mais de 2 mil anos, quando essas terras ao sul de Israel eram parte do Império Romano. Para o cristianismo, ela tem papel fundamental: tornou-se a mãe de Jesus Cristo.

Chamada de virgem por dois dos evangelistas, Mateus e Lucas, acredita-se que ela tinha cerca de 15 anos quando ficou grávida — pela doutrina cristã, por obra do Espírito Santo, ou seja, sem ter tido relações sexuais com homem algum. Na época, Maria já estava prometida em casamento a José, um carpinteiro da mesma cidade, mais velho, já na casa dos 30 anos.

Fato é que desta gravidez nasceria Jesus, o pilar fundador do cristianismo. Mas por que a tradição católica não rende a essa mulher apenas o título de Santa Maria, e são tantas as representações dela pelo mundo?

"Os nomes dedicados a Nossa Senhora dependem muito da forma como ela apareceu. Normalmente são dados pelo nome do lugar onde ela apareceu ou pelas condições em que se deram o aparecimento", esclarece o padre Arnaldo Rodrigues, assessor da Arquidiocese do Rio de Janeiro.

Conforme explica a cientista da religião Wilma Steagall De Tommaso, coordenadora do grupo de pesquisa Arte Sacra Contemporânea - Religião e História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e membro do Conselho da Academia Marial de Aparecida, essas nomenclaturas acabam variando a "cada povo, cada região, cada cultura", por conta de "títulos que correspondem aos eventos decorrentes de inúmeras situações".

Ela lembra que muitos desses títulos são os chamados dogmáticos. É de onde vem, por exemplo, a nomenclatura de Nossa Senhora da Imaculada Conceição — bula assinada pelo papa Pio IX "declara Maria imune da mancha do pecado original", ressalta a pesquisadora — ou mesmo a ideia de chamá-la de Virgem Maria, já que "o Concílio de Latrão, em 649, preconiza como verdade a virgindade perpétua", da mãe de Cristo.

"Há ainda as denominações decorrentes dos lugares onde houve uma manifestação que deu origem à devoção local, muitas vezes ampliada a outros povos e locais, como Aparecida, Guadalupe, Lourdes, Fátima, Loreto, Montserrat, etc.", complementa ela.

"Nomes diferentes são atribuídos à Virgem Maria pois estão ligados ao lugar onde ela apareceu", acrescenta a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadora de história do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. "Não existe algo que determine que ela precise, necessariamente, 'ser batizada' com o nome do território da visão, mas como inicialmente as aparições são uma manifestação de religiosidade popular, antes mesmo de passar por toda a análise canônica de praxe, é o povo que acaba difundindo, num primeiro momento, esses títulos."

"Os tantos títulos que lhe dão todos têm uma razão. É Nossa Senhora de Fátima, porque apareceu lá. É Nossa Senhora do Bom-Parto porque auxilia espiritualmente as parturientes. É Nossa Senhora do Bom-Conselho porque tem sempre uma orientação a dar aos seus filhos", afirma o pesquisador José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor da Universidade Estadual Vale do Aracaú, do Ceará. "E todos esses títulos são de uma só mãe, porque é mãe de toda a humanidade e em todos os lugares, os povos a chamam e representam conforme seus costumes, suas tradições. É claro que para uma veneração pública é necessária a aprovação da Igreja."

A devoção a Nossa Senhora, contudo, remonta ao princípio do cristianismo. Por princípio, a ideia é que ela funcione como um canal direto ao próprio Cristo — dentro da premissa que pedido de mãe ninguém nega.

Uma passagem importante do próprio evangelho reforça essa ideia. Trata-se da narração do milagre das bodas de Caná, que aparece exclusivamente no texto de João, no qual Jesus faria aquele que é considerado seu primeiro milagre.

Na festa de casamento, onde ele estava junto a sua mãe como convidado, os anfitriões notam que havia acabado a bebida. Maria chama Jesus de lado e explica o drama. Ele, então, transforma água em vinho e garante a continuação da celebração.

"Seria um escândalo para o casal se acabasse a bebida antes de a festa terminar. Quando Maria pede a Jesus que tome uma providência, fica importante o papel dela como intercessora", analisa padre Rodrigues.

A devoção mariana também se baseia em outro momento dos textos bíblicos. Quando Jesus está agonizando na cruz, segundo o relato, ele teria dito algumas palavras para sua mãe e também para seu apóstolo João. Ali, teria utilizado o seguidor como representante toda a humanidade, considerando Maria a mãe dele — e, por extensão, a mãe de todos.

"Nesta ação, João representa toda a humanidade. Maria se tornou a mãe nossa. A nova Eva, uma Eva livre do pecado, como a Igreja nos ensina. Assim, Maria Santíssima cuida da humanidade como mãe e mãe zelosa", analisa o hagiólogo Lira.

Segundo estudos do padre Valdivino Guimarães, mariologista e ex-prefeito de Igreja do Santuário Nacional de Aparecida, os registros mais antigos dessa crença no poder da mãe de Cristo remontam ao século 2. "Indícios arqueológicos demonstram a veneração dos primeiros cristãos. Nas catacumbas de Priscila, se vê pinturas marianas do segundo século, em local onde os primeiros cristãos se reuniam", afirma ele.

"Nas catacumbas, encontramos o afresco considerado, até agora, a mais antiga imagem da Virgem Maria com o Menino Jesus", comenta De Tommaso. "Esse afresco deixa evidente que os primeiros cristãos entendiam que a vinda de Jesus fora prenunciada nos livros sagrados do povo hebreu. E Maria, a mulher que disse o sim e que tece em seu ventre o corpo do Salvador. Há um ícone muito antigo conhecido como Maria, a tecelã."

A mais remota das aparições remontam ao ano 40 e seria um episódio de bilocação, na verdade, pois Maria ainda era viva. Segundo a tradição cristã, ela teria aparecido ao apóstolo Tiago na atual cidade de Zaragoza, hoje Espanha, onde ele estava pregando. Fato é que há registros da construção de uma pequena capela ali, desde os primórdios do cristianismo.

Outro relato sempre citado por pesquisadores é o de Nossa Senhora das Neves, uma aparição de agosto de 352, em Roma. Foi por conta desse episódio que foi erguida a Basílica de Santa Maria Maior.

"Maria é venerada desde os primórdios do cristianismo. Em muitos escritos, e inclusive na própria iconografia primitiva, ela recebe um lugar de destaque. A mais antiga antífona mariana que se tem notícia é do século 2, que é chamada, em latim, de Sub tuum presidium, ou Sob tua proteção. O Concílio de Éfeso, em 431 d.C, analisa e aprova a tese teológica de que Maria também era mãe de Deus, entre outras atribuições que ocorreram mais à frente", pontua Medeiros.

"O tema de Maria está presente em todos os períodos da história do cristianismo. Há uma tradição que aponta que a primeira aparição de Maria teria acontecido na Espanha, em 40 d.C, cujo vidente teria sido São Tiago, apóstolo de Jesus, considerado o evangelizador do território", prossegue a especialista. "O título adotado foi o de Nossa Senhora do Pilar, já que, segundo o relato, Maria teria mostrado ao apóstolo uma coluna, pedindo que ele construísse um santuário naquele lugar."

Ao longo dos séculos, contudo, esses relatos passariam a ser constantes. De acordo com padre Rodrigues, estima-se que hoje sejam cerca de 1,1 mil nomes pelos quais a santa é conhecida.

"Bom, falando do ponto de vista histórico, as aparições acontecem em períodos muito particulares", diz Medeiros. "Não cabe a nós, enquanto historiadores, julgarmos se elas são verídicas ou não, mas o fato está que muitas acontecem em meio a um determinado contexto político-social. É o caso de Fátima, cuja mensagem é muito interessante, e condiz com a postura da que a Igreja vai adotar, frente ao comunismo, nos anos posteriores. Temos o caso de Aparecida, por exemplo, cuja imagem é achada em meio ao debate em torno da abolição da escravatura. Temos o caso de Guadalupe, onde a virgem Maria, com traços indígenas, é um símbolo da luta contra a desigualdade. E por aí vai."

Mas nem sempre a Igreja aprova essas manifestações. "Nem todas as aparições que ocorrem hoje foram oficialmente reconhecidas pelo catolicismo. Há um protocolo a ser seguido. Sem contar que algumas são reconhecidas totalmente e diante de outras, ainda em fase de análise, foi permitida somente a liberdade de culto", lembra ela. "O que a suposta Virgem Maria diz, no caso, precisa condizer totalmente com os princípios da Igreja Católica e até a idoneidade moral e psicológica dos videntes é analisada."

Autora do livro 21 Nossas Senhoras que inspiram o Brasil, a jornalista Bell Kranz conta que a devoção mariana foi trazida ao Brasil já pelas esquadras de Pedro Álvares Cabral — em um dos barcos foi trazida uma imagem da santa. "[A tradição] chegou essencialmente pelos portugueses, pelos colonizadores", explica. "O Tomé de Sousa [primeiro governador-geral do Brasil] chegou à Bahia já com uma imagem da santa na bagagem… Nossa Senhora da Conceição! E logo erigiu uma capelinha em Salvador, que hoje é a grande catedral Conceição da Praia [Basílica Nossa Senhora da Conceição da Praia]."

"Eu diria que o Brasil foi escolhido por Nossa Senhora, não é fanatismo dizer isso", comenta Lira. Para ele, há uma "predileção especial de Nossa Senhora para com esta terra".

"Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora das Candeias (a mesma da Candelária e da Purificação), Nossa Senhora Aparecida (que é a mesma Conceição), penso que são as mais importantes para o Brasil pela veneração que o povo lhes atribui", acrescenta o hagiólogo.

"É claro que cada Estado brasileiro tem sua devoção. Por exemplo, na Bahia há uma forte devoção à Nossa Senhora da Boa-Morte. Em Minas Gerais, Nossa Senhora da Piedade que é a mesma Nossa Senhora das Dores e por aí vai. No Pará, em Belém, temos a linda manifestação à Nossa Senhora de Nazaré que anualmente leva milhões ao Círio de Nazaré. Aqui no Ceará é interessantíssima a devoção a Nossa Senhora das Dores, em Juazeiro do Norte, por exemplo. E qual a razão? Não dá para explicar concretamente. É algo meio que filial mesmo. Amor de filho à sua mãe e uma mãe que é mãe de todas as mães, pais e filhos."

Kranz atenta para o fato de que, dada a religiosidade católica inerente à própria construção da nação brasileira, "desde a colonização, Nossa Senhora está presente em todos os momentos de nossa história".

E a ligação brasileira com a santa é umbilical. Isto porque, como bem lembra a jornalista, em 1646 o então rei português dom João 4º "consagrou todo o reino, incluindo aí as colônias, a Nossa Senhora". "Aí, 217 anos depois do descobrimento do Brasil, ela apareceu lá para os pescadores [Nossa Senhora Aparecida]", acrescenta Kranz.

Maria se tornou "Nossa Senhora", assim chamada, somente no fim do período medieval. Mas, historicamente, a Igreja já a reconhecia como "Mãe de Deus" muito antes — mais precisamente a partir do século 5, depois do Concílio de Éfeso, em 431. "[É quando] Maria recebe o título de Thotòkos, a Mãe de Deus, dogma que define explicitamente a maternidade divina de Maria. Daí em diante, ela passa a ocupar, por exemplo, o posto principal, o conteúdo da imagem do presépio se amplia e praticamente esse ícone resume a história da salvação", esclarece De Tommaso.

De acordo com o mariologista Guimarães, Maria "ganha destaque sociológico, cultural e religioso" no período medieval. É quando ela adquire "caráter de poder", tornando-se "aquela que destrói o mal". Assume características fortes, "ganha rosto de rainha". Assim, passa a ser invocada como "guerreira", "a mulher que combate o mal e, com poder militar, destrói as heresias".

"Maria passa da dimensão cultural para a política", compara ele. "No período feudal, diante da opressão, Maria se torna a padroeira para os que nela buscam auxílio, e em troca de proteção, o fiel a louva com oração e atos de caridade."

A santa passa a ser invocada "como a mãe que protege diante da ira de Deus, por algum pecado cometido, não só de forma individual mas também comunitária".

"Com o surgimento das ordens mendicantes, Maria se aproxima das pessoas, ela é tirada do trono de realeza, onde fora colocada pela teologia monástica, e se faz irmã, pobre e vizinha das pessoas", diz Guimarães.

Ao fim do período medieval, Maria já era um ícone consolidado dentro do catolicismo, tema constante das pregações e protagonista de tradições como medalhinhas, procissões, novenas e outras manifestações.

10 outubro 2021

Escrito nas Entrelinhas: Parte 3 ~ Capítulo 8

 

Capítulo 8




Eddie Sullivan ficou empolgado com o telefonema de Noah. Ele cancelou todos os compromissos que tinha agendado para o resto daquele dia, pois sabia que os seus pensamentos estariam bem longe. Ainda assim, o seu instinto impediu-o de sair da empresa. Andava de um lado para o outro, no seu escritório, enquanto esperava que o rapaz que lhe telefonara voltasse a dar notícias. Pouco depois, telefonou à filha, que pareceu ficar entusiasmada, tal como o pai. Pela primeira vez, havia notícias francamente boas, já que tudo indicava que Shade estava vivo! Eddie prometeu telefonar a Bianca assim que Noah voltasse a contactá-lo.

Apesar de tudo, o pai de Bianca não queria manter as expectativas demasiado altas. Já por diversas vezes o haviam contactado a fornecer informações, informações que se revelariam pistas falsas. A verdade é que ninguém sabia do paradeiro de Shade. Ele estava já desaparecido há mais de um ano!

Foi com grande nervosismo que Eddie recebeu a mensagem de Noah! A medo, clicou na fotografia. Ali estava um bonito rapaz de cabelos ruivos, a sorrir para a fotografia! Shade, apesar de estar com barba, tinha traços fisionómicos similares a Jules, traços que aumentavam com aquele sorriso que Eddie tão bem conhecia! Jules fazia exactamente a mesma expressão! Eddie teve de se sentar no seu cadeirão, tal foi a surpresa!

- Por favor, traga-me um café bem forte… - pediu ele pelo intercomunicador, à sua secretária.

Instantes depois, a secretária bateu à porta e após ouvir um fraco “Entre!”, ela entrou, assustando-se com a palidez no rosto do patrão.

- Senhor Eddie! O senhor está bem? Quer que mande chamar um médico?

- Sente-se, minha cara! Sente-se aqui…! Sabe aquele rapaz que me ligou há bocado? Ele acabou de me enviar uma fotografia… Veja só!

A secretária pegou no telemóvel que o patrão lhe entregou, com as mãos a tremer. Ela conhecia toda a história, já que era uma funcionária da mais alta confiança de Eddie. Ao clicar na mensagem, ela deu um gritinho de surpresa e levou as mãos à boca!


Noah envia a fotografia que tirou a Shade. Eddie compara a foto com uma fotografia de Jules. 
As semelhanças entre os dois irmãos deixam-no em choque!


- Meu Deus! Como ele é parecido com o menino Jules! Incrível!

- Este rapaz falava a verdade… - suspirou Eddie, emocionado, enquanto tomava o café. - Ele mandou ligar daqui a duas horas…. Pergunto-me porquê?  

- Eu se fosse a si, ligava já! Ele deve estar a querer criar mais suspense! Talvez para depois o senhor Eddie ceder à pressão de lhe pagar a recompensa que prometeu!

- Sabes que mais? Tens razão!

Eddie telefonou para Noah. Este apercebeu-se do telemóvel a vibrar, mas Shade aproximava-se a passos largos do seu carro. Noah rapidamente pôs o telemóvel em modo de silêncio e colocou-o no porta-luvas. Mesmo a tempo!

Noah ligou o carro. Shade entrou, colocou o cinto e fechou a porta. O carro arrancou a grande velocidade, mas felizmente não apanharam muito trânsito. Ao fim de 10 minutos, estavam à entrada da estação de comboios de White River.

- Acompanhas-me, Noah? - perguntou Shade, um pouco nervoso.   

- Mas é claro que sim! Vou à bilheteira comprar o teu bilhete!

- Espera, não é preciso! Aquele velhote que partilhou o quarto comigo, o senhor Barry, deu-me algum dinheiro! - respondeu Shade, preparando-se para tirar o envelope que tinha na sua sacola.

- Guarda esse dinheiro para a viagem! Vais precisar dele, se quiseres comer alguma coisa! E olha que a viagem ainda vai ser longa…. Mais longa do que quando vieste para cá, estou certo disso. - rematou Noah, com um sorriso terno.  

Shade abraçou Noah, emocionado! O rapaz era tão gentil! Ele sentiu uma vontade enorme de o beijar e dizer-lhe que por ele ficaria ali, mas tal não seria justo. Noah escondia a sua sexualidade, por causa de viver numa terrinha preconceituosa. Quanto a Shade, este tinha uma grande missão à sua frente. Para além disso, estava mais do que na hora dele regressar a Fargo.

Noah e Shade estiveram abraçados durante algum tempo, o que causou alguma estranheza e um levantar de sobrolhos no terminal da estação. No entanto, as pessoas rapidamente regressavam aos seus afazeres ou levantavam-se para seguirem viagem. Depois de comprar o bilhete de Shade, Noah acompanhou-o até ao terminal número 8, de onde partiria o comboio para Fargo, dali a cinco minutos.

- Então…. Creio que isto é um adeus… - suspirou Shade.

- Olha, Shade… Eu espero que tudo te corra bem! Deixo-te o meu número! Adiciona-me no Criss-Cross e assim, para mantermos o contacto, está bem? Manda cumprimentos à tua família! O teu pai, o senhor Eddie, deve estar bastante preocupado! - comentou Noah, arrependendo-se mal acabou de dizer aquilo.

A expressão no rosto de Shade alterou-se ao ouvir falar em Eddie. Para disfarçar o desagrado, até porque estava muito agradecido a Noah por tudo, Shade abraçou-o. Depois, olhou para os lados a ver se ninguém os via e com um sorriso sedutor, deu-lhe um caloroso beijo, enquanto se escutava um apito inconfundível, seguido de uma voz roufenha, que anunciou:





- “Vai partir dentro de momentos, da linha número 8, o comboio precedente de San Lynch e com destino a Fargo. Efectua paragem em todos os apeadeiros e estações. Atenção à sua partida!

- Desculpa qualquer coisa, Noah! Muito obrigado por tudo o que fizeste por mim! És um bom rapaz! - rematou Shade, com os olhos cheios de lágrimas.

- Toma! Um último presente! - murmurou Noah, entregando um saquinho a Shade.

Este colocou-o de imediato no bolso do casaco, com um sorriso.

- Estás a sair da casca, Noah! Até qualquer dia! - despediu-se Shade, enquanto entrava na última carruagem a correr, uma vez que o comboio já iniciara viagem.


Noah não aguentou e desatou a chorar com a partida de Shade...
...A esperança de voltá-lo a ver partia, tal e qual o comboio que se afastava rapidamente...


FINAL DO ACTO SEGUNDO


[Continua...]

08 outubro 2021

Cats [2019]

 


Cats [2019] foi o filme que assisti no serão de ontem.


Sinopse:

Existia em Londres, em tempos idos, uma tribo de gatos Jellicles. Todos os anos eles reúnem-se. A líder deles, Deuteronomy [a Excelentíssima Dama, Judy Dench] escuta a história deles. O gato ou a gata que tiver a história mais impactante, será escolhido pela lendária líder e partirá para Heaviside Layer - uma espécie de Paraíso - onde começará uma vida nova. Quem será o gato ou a gata escolhida?  


Eis um trailer:

 



A minha opinião:


Na vida real, esta raça de gatos não existe "desta forma". Os "Tuxedo Cats" [o verdadeiro nome da raça Jellicle] são gatos que têm características ao nível dos "desenhos" [no pêlo] e são sempre pretos. No entanto, os Tuxedos também podem ter pêlo branco no rosto e na ponta da cauda, mas o requisito principal é terem o corpo preto, peito branco e patas brancas.

O filme tem sido massacrado pela crítica e coincidentemente, depois de ver o filme é que descobri sobre isso e que o próprio criador do Musical Cats no Teatro, Andrew Lloyd Webber, ficou com uma tremenda depressão e teve de arranjar um... Cão! Um cão terapeuta!

Independentemente das críticas negativas, eu só tenho a falar bem do filme. Claro que a história é um bocadinho invulgar, pois passamos ali duas horas a ver gatos a disputarem o lugar, enquanto contam as suas histórias à líder. Mas tirando isso e claro, as dificuldades de fazer um Musical de Teatro adaptar-se ao Cinema, ainda por cima com computadorização [ao nível das "fursonas" dos personagens], eu adorei o filme.

Acho que muita gente que o criticou não conseguiu ver o filme com olhos de apreciador dos bailados, da arte que estava em palco. Existem cenas de sapateado maravilhosas e actores que têm uma bela voz e cantam muito bem. Outros nem por isso. Mas ao nível das coreografias, fiquei preso ao filme o tempo todo. Maravilhoso.  

Acredito que as pessoas que lêem o meu blog vão gostar muito desta obra. 

Eu recomendo, caso ainda não tenham visto!


Nota Final João: 10/10

06 outubro 2021

Escrito nas Entrelinhas: Parte 3 ~ Capítulo 7

 

Capítulo 7


Shade levou alguns minutos até recuperar. Ficara muito nervoso. Noah consolava-o como podia, mas o rapaz estava mesmo agitado. Por momentos, Noah pensou em levá-lo de novo ao hospital de onde tinham saído, algum tempo antes. Quando Shade, por fim acalmou, Noah ligou o carro. Não queria fazer muitas perguntas. Temia que o rapaz ficasse mais agitado.

Intrigado com a revelação, Noah remeteu-se ao silêncio, enquanto conduzia rumo à farmácia. Ao chegar lá, deixou Shade no carro e dirigiu-se à farmácia para comprar a medicação. Lá, ele aproveitou a oportunidade para fazer uma chamada. Depois de pedir os medicamentos e o farmacêutico ter ido prepará-los nas traseiras, Noah encostou-se atrás da porta de saída, certificando-se de que via Shade, sentado no seu carro. O telemóvel tocava, tocava…. Noah estava já prestes a desligar, quando uma voz feminina atendeu.




- “GraceTech, bom dia! Em que posso ser útil?

Noah baixou o tom de voz.

- Olá bom dia, minha senhora! Eu precisava de falar com o patrão da empresa, o senhor Sullivan!

- “O senhor tem hora marcada? É alguma reunião? É para agendar algo? O senhor Sullivan tem uma agenda muito preenchida…

- Minha senhora, eu estou a ligar porque tenho informações sobre o filho do senhor Sullivan! O Shade!

O tom de voz da secretária alterou-se.

- “O senhor vai-me desculpar, mas o que não tem faltado são pessoas a ligarem com supostas informações sobre o paradeiro do rapaz…

- Neste momento, o Shade está na minha companhia. A senhora vai passar a chamada ou não?

- “Só um momento! Por favor, não desligue!


*PIIIIP*


Uma voz forte falou, segundos depois.

- “Edward Sullivan, em que posso ser-lhe útil?

- Senhor Edward, daqui fala um rapaz chamado Noah. Noah Jefferson.

O farmacêutico apareceu e pôs-se a olhar para Noah, desconfiado.

- A sua receita, menino Noah, está pronta!

- Obrigado senhor Perkins, obrigado! Eu já vou aí! - respondeu Noah, tapando o bocal do telemóvel.

Do outro lado da linha, Eddie resmungou.

- “Senhor Jefferson, eu tenho uma vida bastante ocupada. A minha secretária transferiu a chamada, porque o senhor diz ter notícias sobre o meu filho Shade?

- Assim é, senhor!

- “E pode dizer-me do que se trata?

- Eu li no jornal que havia uma recompensa por informações… - comentou Noah, muito depressa. Ele tinha medo de perder a coragem. Eddie suspirou, aborrecido.

- “Assim é, meu caro. Assim é. Mas só será dada a recompensa a quem tiver provas reais do que fala. O senhor tem provas do que está a dizer? Já agora, está a ligar-me de onde?

- Diga-me um contacto para onde possa mandar uma fotografia. Assim poderei provar-lhe que não estou a mentir…

- “Tem papel e caneta? Anote aí…

Noah pediu ao farmacêutico um papel e caneta e tomou nota de um número de telemóvel. Aproveitou e ditou o seu número a Eddie, que tomou nota do número de Noah imediatamente.  

- Dentro de minutos envio-lhe uma fotografia para o número que me deu, senhor Eddie. Depois, se acreditar em mim, poderemos falar mais…

- “Fico a aguardar, meu caro Jefferson!” - rematou Eddie com tom de voz trocista, desligando em seguida.


*Click!*

 
- Olha-me este! O cabrão desligou-me na cara! Tu já vais ver…! - murmurou Noah, enquanto pagava a medicação.

Depois disso, o enfermeiro pegou no saquinho com as vitaminas e dirigiu-se ao carro onde Shade o aguardava impaciente.

- Possa, tanto tempo! Os médicos estiveram a fabricar os medicamentos ou quê?

- Não são médicos, são farmacêuticos… - corrigiu Noah. - E bem, o senhor Perkins já está um bocado velhote, foi por isso… Ele teve de ir às traseiras buscar as vitaminas. Aqui tens. Começas a tomar agora, quando comermos, está bem?

- Está bom, está bom… - suspirou Shade, impaciente. - Olha, quero mijar… Estou apertadinho…

- Aguentas mais uns dois minutos? Já estamos muito perto do sítio onde vamos comer!

Animado com a perspectiva, Shade sorriu feliz. Noah ligou novamente o rádio e arrancou a grande velocidade. Não tardaram a chegar a um local chamado Luna’s Diner. Assim que Noah estacionou o carro, Shade abriu a porta e saiu a correr para o restaurante, perguntando a uma empregada onde era a casa de banho. Noah riu-se e depois de se certificar que tinha o carro fechado, dirigiu-se ao balcão do local, onde Luna, a dona do restaurante, o aguardava com um sorriso.

- Então Noah, hoje madrugaste!

- Olá Luna! Estás linda! Como sempre! - comentou Noah, com um sorriso.

Luna era uma mulher de 35 anos. Alta, elegante, com uma longa cabeleira preta até ao fundo das costas. Vestia uma farda vermelha, umas leggings pretas e patins vermelhos. No topo da cabeça envergava um pequeno chapéu vermelho. Naquele momento, o restaurante ainda se encontrava às moscas.

Após alguns momentos em amena cavaqueira, Shade ressurgiu ao lado de Noah e dando-lhe um toque no pé, afastou-se, indo sentar-se numa das mesas mais distantes do balcão.

- Quem é aquele, Noah? Algum primo teu de visita à nossa cidade? - perguntou Luna, de forma nada inocente. Ela sabia bem que aquele era o misterioso rapaz de que toda a cidade falava há já alguns dias.

- Aquele é o rapaz que eu estive a cuidar enquanto esteve em coma no hospital. Ele teve alta médica hoje e vou levá-lo ao comboio daqui a pouco.

- Ah bom! Entendi! Ouvi dizer que ele era um foragido do governo, é verdade? A polícia não tinha os dados dele, nem o hospital…! É como se ele nunca tivesse existido…! - comentou Luna, de forma insinuosa.

- É verdade, o rapaz tem um passado caricato… Porque não lhe vais perguntar o que ele quer comer? Ele está cheio de fome!

- Combinado! Ele até é bem giro! Vou deixar-lhe o meu número, ah ah ah! Adoro bandidos! - respondeu Luna, com ar maroto.

Num instante, Luna atravessou o restaurante e aproximou-se de Shade, que a mirou de cima a baixo, embasbacado. Luna era uma mulher em plena forma e a roupa que envergava ficava-lhe a matar. Shade não conseguiu ficar totalmente indiferente.

- Olá lindo, bom dia! O Noah contou-me que saíste hoje do hospital! Deves estar com fome! Já decidiste o que queres comer?

- Awwwww! Obrigado! Você é muito gentil! E bonita! - respondeu Shade, um pouco atrapalhado. Por mais que não quisesse, ele não conseguia evitar olhar para os peitos de Luna e para o seu rabo.

- Ohhhhh, que querido! Já ganhei o dia! - respondeu Luna aproximando-se de Shade e mexendo nos cabelos dele. - Então, o que vai ser?

Noah aproximou-se e sentou-se em frente de Shade.

- Posso comer o que eu quiser, Noah?

- É por minha conta, Luna! Ele merece!

- Sim senhor! Então o que vais querer, querido?

- Vou querer…. Hummmm… Este menu aqui! E traga-me batatas fritas extra, molhos e um batido à moda da casa!

- E tu Noah, o que vais querer?

- Para mim pode ser umas tiras de bacon, umas panquecas com geleia e uma cola!

Luna tomou nota dos pedidos e virando costas, dirigiu-se à cozinha. Shade sorriu para Noah.

- Obrigado, meu! És um amor!

- Ohhhhh...! Sou nada...! Aposto que dizes isso a todos! - comentou Noah, antes de corar bastante ao sentir uma das mãos de Shade debaixo da mesa.






Shade observava o local, deliciado. Ele sentia que estava noutro mundo. Luna tinha decorado o restaurante num ambiente retro, a imitar os anos 50 e 60. O chão era em tijoleira preta e branca, aos losangos, que contrastavam com o resto do lugar. As paredes estavam pintadas de azul-aqua, com pormenores a vermelho aqui e ali. 

Repletas de objectos, havia entre eles discos, pinturas, placas de veículos e fotografias daquele restaurante ao longo das várias gerações que já o tinham frequentado. As cadeiras e bancos eram vermelhos com partes metalizadas e riscas brancas. Já as mesas eram brancas com partes metalizadas. Do tecto, muitos focos de luz davam uma graça especial ao local, assim como a jukebox, que estava situada em lugar de destaque, do outro lado do restaurante, onde estava um alvo para jogar dardos.         

- Este sítio é espectacular! A Luna é a dona dele?

- Ela é a actual dona, sim… O restaurante já está na família dela desde os anos 50… Quando a mãe lhe passou o negócio, ela decidiu reformular o espaço e dar-lhe um agradável toque retro ao mesmo tempo que o modernizava. É um dos locais que mais atrai turistas e viajantes nesta cidade!

- Se eu vivesse cá, vinha para aqui muitas vezes, é um sítio mesmo agradável… - suspirou Shade, um pouco melancólico.

- Tu não precisas de ir, Shade…. Podias ficar em minha casa até ficares totalmente bem!

- Não… - respondeu Shade, determinado. - Eu tenho coisas para fazer…. Tenho uma promessa para cumprir…

- E que promessa é essa…?

- Hora da paparoca, meninos! - gritou Luna, com voz triunfante, enquanto deslizava pelo restaurante até Noah e Shade.  

- Boa! Estou cheio de fome!

Luna colocou um prato com um hambúrguer enorme em frente de Shade, bem como um prato cheio de batatas fritas e vários molhos. Em seguida, colocou um prato com tiras de bacon, outro com várias panquecas acabadinhas de fazer, com cobertura de geleia e chantilly em frente de Noah. Deslizando até ao balcão, ela foi buscar o batido que Shade tinha pedido e a cola para Noah.

- Que vos saiba bem, queridos! Bom apetite! - rematou, voltando a deslizar até ao balcão, enquanto entravam alguns camionistas no restaurante, que logo sorriram maliciosamente ao tirarem as medidas a Luna.

- Bom apetite, Shade!

- Obrigado e igualmente, Noah! Toca a comer!

Aos poucos, o restaurante foi-se enchendo de gente, principalmente camionistas e viajantes que paravam ali para comer algo quente antes de seguirem viagem. O ambiente ficou ainda mais animado com tanta cor e conversas paralelas que iam ocorrendo. A dada altura, Luna teve de pedir ajuda às funcionárias que tinha na cozinha, para que nenhum cliente tivesse de ficar muito tempo à espera.

- Então, está bom? Estás a gostar, Shade?

- Sim, sim! Nhaaaammm! Estava cá com uma fome, Noah! Isto sim, é comida! Não aquilo que nos dão lá no hospital!

Noah decidiu perguntar algo que lhe estava a queimar os lábios:

- Nos hospitais é sempre assim, Shade… Mas diz-me uma coisa… Como é que tu, sendo filho de Laura Sullivan, não estavas registado no banco de dados?

Shade pegou no batido e bebeu, lentamente, enquanto pensava numa desculpa para se escapar àquela pergunta. Depois de se aperceber que, por mais desculpas que desse, Noah acabaria por insistir, ele pousou o copo vazio, limpou a boca e suspirou:

- Eu não sei a resposta para isso. Desculpa, mas não te sei responder.

Aquela não era, de todo, a resposta que Noah esperava ouvir! Embasbacado, ele olhou para o rapaz durante alguns segundos, a tentar avaliar até que ponto este lhe estava a esconder algo. Como Shade parecesse incomodado com o assunto, Noah decidiu optar por outro caminho. Com um sorriso acolhedor, sugeriu:

- Olha, podemos tirar uma selfie? Queria guardar uma recordação de ti, Shade…  

- Mas tu já tens recordações minhas… Eu deixei algumas dentro de ti! Ah ah ah ah!

- Ohhhhhh… Vá lá… Eu vou sentir saudades tuas… Não mereço isso, ao menos? - insistiu Noah, com ar triste.

Shade fez sinal a Luna, que se aproximou deles. Ele pegou no telemóvel de Noah e pediu:

- Luna, pode tirar-nos uma foto? Vou-me embora não tarda muito e o Noah quer ficar com uma fotografia minha de recordação!

- Eu depois posso pedir a fotografia ao Noah e mandar imprimir, para a colocar aqui na parede, querido? Eu vou sentir saudades de ver um rapaz tão giro como tu! - comentou Luna, dando um beijo nas bochechas de Shade.

- A sério? Pena que eu seja gay…! - rematou Shade às gargalhadas, perante o olhar espantado de Luna, que não conseguiu disfarçar a surpresa.

- Aiiii… Aonde é que este Mundo vai parar, se os gatos mais giros começam todos a gostar de homens! - suspirou Luna, sem conseguir disfarçar o embaraço. - Vá, sorriam para a fotografia! Digam: Banana!

- Banana! - exclamaram Noah e Shade, divertidos.

Luna tirou várias fotografias e assim que terminou, pousou o telemóvel em cima da mesa e voltou para o balcão, sem dizer mais nada.

- Ui...! Que bicho é que lhe mordeu? - estranhou Shade.
  
- Acho que lhe estragaste a fantasia que ela estava a ter, Shade. As pessoas daqui não lidam muito bem com os gays, sabes? White River é uma cidade maior do que Grace Falls, mas ainda assim é uma cidade pequena, no que diz respeito a certas coisas! As pessoas daqui ainda são muito preconceituosas…

- Infelizmente, é assim um pouco por todo o lado… - suspirou Shade, levantando-se. - Olha, vou à casa de banho, ok?

Ok, eu vou pagar e vou para o carro, espero lá por ti.

- Combinado, até já!

Shade levantou-se e seguiu para a casa de banho. Ele sabia que as casas de banho do comboio não tinham o conforto que aquela tinha, por isso decidiu ir, embora não tivesse ainda muita vontade. Quanto a Noah, este pagou a conta a uma das funcionárias de Luna, que se encontrava a atender clientes no outro lado do restaurante. Depois de entrar no carro, ele enviou a fotografia que tinha tirado com Shade, à qual adicionou a mensagem:

Agora já acredita em mim? Ligue-me daqui a duas horas!


[Continua...]

01 outubro 2021

Outubro

 

De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.

E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.

Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.

Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.


Poema "De Amor Nada Mais Resta Que Um Outubro", da autoria de Natália Correia
[13/09/1923 ~ 16/03/1993]