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Capítulo 4
*17 de Maio de 2018*
Durante os dias que se seguiram, Shade entrou num processo que os médicos consideravam normal para casos como o dele. Aos poucos, ele ia recuperando a sua consciência, embora se mantivesse adormecido, sendo vigiado de perto pelo enfermeiro Noah e também pelo paciente da cama que ficava ao lado da cama dele, um senhor de setenta anos chamado Barry Williams.
Naquele dia, estava Noah a verificar se tudo estava em ordem com Shade quando este abriu os olhos, muito lentamente. Sentia que estava a despertar de um sono bastante profundo. Ao deparar-se com Noah a examiná-lo, cheio de fios ligados ao seu corpo nu, Shade abriu os olhos imediatamente e assustou-se.
- Quem é você? O que é isto? Onde é que eu estou? O que me está a fazer?
Noah, com um ar muito profissional, aproximou-se de Shade e colocou uma mão sob os ombros deste. Com ar paternal, explicou:
- Antes de mais, sê bem-vindo! Estás no Hospital do Distrito Este da cidade de San Lynch! O meu nome é Noah e eu sou um enfermeiro deste hospital. Tenho estado a cuidar de ti, desde que entraste cá.
Shade olhou para Noah, indignado. Noah não devia ser muito mais velho do que ele! E dizia-se enfermeiro?
- Olha lá, que idade tens tu? E… Por que raios… Estavas a examinar-me… Tudo? - perguntou.
Noah ficou envergonhado. Não queria explicar o que estivera a fazer, porque lhe soava mal.
- Eu tenho 23 anos. Acabei há pouco tempo o curso de Enfermagem na Universidade de Massachusetts. Quando terminei o curso, decidi começar a trabalhar na minha terra natal. Tive sorte, pois os enfermeiros são tão ou mais importantes do que os médicos. Afinal, somos nós que fazemos o trabalho mais difícil… - respondeu Noah com orgulho, levemente corado.
- Tens 23 anos? Pareces mais novo! - comentou Shade, com ar divertido. - Tens cara de…. Sei lá…! 18 anos!
Noah deu uma gargalhada.
- Ah ah ah! Onde isso já vai! Quanto ao exame a tudo, como disseste, isso é algo que fazemos, sabes? Não é nada pessoal…
- Não é bem isso que o teu corpo diz, meu caro Noah! - declarou Shade, com voz divertida.
Noah corou até à raiz dos cabelos. Um alto nas suas calças denunciava-o. Ele baixou o tom de voz.
- Olha…. Acredita em mim, por favor. Eu não te fiz nada… A sério. Tenho estado a cuidar de ti desde que te trouxeram para o hospital, há quase um mês atrás…
Shade olhou para ele, perplexo!
- Espera aí, já lá vamos…! Disseste… Um mês? Que raio de dia é hoje?
- Estamos a 17 de Maio…. Foste encontrado inconsciente por um camionista numa estrada nos arredores de White River, durante uma tempestade! Ele trouxe-te para cá a 21 de Abril!
Shade tentou lembrar-se do que lhe acontecera. Após passar semanas em Grace Falls a tentar encontrar o diário do irmão, ele decidira abandonar a cidade maldita, algum tempo depois do concretizar o seu objectivo. No entanto, a Primavera daquele ano estava a ser invulgar. A temperatura mantinha-se baixa, chovia muito e havia dias em que até nevava! Se Shade tivera sorte enquanto se mantivera em Grace Falls, cidade essa que se tinha tornado uma cidade-fantasma depois de rebentar o escândalo de Father Simon, ele já não podia dizer o mesmo quando decidiu sair da cidade e partir.
Shade tinha passado a caminhar sem rumo. Os alimentos não tardaram a escassear e ele não se cruzara com ninguém, durante dias a fio. Com o regresso das tempestades de neve e o frio constante, ele fora obrigado a viajar pouco de cada vez e passava grande parte do tempo a procurar abrigos e a alimentar-se de ervas, plantas, pequenos animais que conseguia caçar e da comida que tinha trazido consigo de Grace Falls.
A última coisa de que ele se lembrava era de estar a percorrer uma longa estrada recta, que se estendia até ao limite do horizonte, enquanto pensava em Jules e no que este tinha escrito no diário, uma vez que Shade tinha lido o diário até ao fim.
- O diário! Eu tinha um diário comigo! Onde é que ele está?!? - perguntou, nervoso.
Noah levantou-se e desapareceu por uns instantes, regressando com uma bolsa, que pousou no peito de Shade.
- Aqui está. Ninguém o leu, esteve à minha guarda desde que chegaste. Já agora… Como é que tu te chamas? É que o sistema informático não tem os teus dados…
Shade abriu a bolsa e para sua grande alegria, deparou-se com o diário, totalmente intacto e com o cadeado fechado! Feliz, ele sorriu para Noah e respondeu:
- Eu chamo-me Shade. Agradeço-te por teres cuidado de mim todo este tempo. Agora, queres explicar-me aquilo de há bocado? - baixou o tom de voz e perguntou. - Por acaso, meu caro Noah, tu és gay?
Noah voltou a corar até à raiz dos cabelos. Coçando a cabeça, atrapalhado, murmurou, depois de olhar para ambos os lados:
- Sim…
Shade mexeu a mão esquerda, fazendo um gesto para Noah se aproximar dele e disse-lhe ao ouvido:
- Ainda bem, porque eu também sou. Quando estiver melhor, eu agradeço-te o que fizeste por mim…
Noah ficou atrapalhado ao escutar aquilo. Shade tinha falado num tom de voz sedutor e a sua mão direita tinha tocado ao de leve no braço esquerdo do enfermeiro, que se ergueu quase imediatamente, mostrando um alto indisfarçável nas calças. Shade riu-se, divertido.
- Quando é que me vão dar alta? - perguntou.
Noah pegou numa prancheta que estava no fundo da cama e escreveu um relatório. A dada altura, levantou a cabeça e explicou:
- Eu vou informar os médicos que tu acordaste do coma. É possível que tenhas de fazer mais alguns exames, mas aparentemente, estás recuperado! Por isso, eu penso que terás de ficar cá mais dois ou três dias e depois irás receber alta clínica. No entanto, eu preciso de saber umas coisas sobre ti, Shade! Tu tens para onde ir? Porque estavas naquela estrada? És um sem-abrigo? É que chegaste cá totalmente desnutrido e desidratado!
Shade fez-se desentendido.
- Não me lembro…
- Bom, tenta fazer um esforço, está bem? É importante! - rematou Noah, abrindo as cortinas. - Agora tenho de ir, mas voltarei mais logo!
- Adeus! - respondeu Shade, piscando o olho ao enfermeiro que virou a cara rapidamente, com um sorriso tímido.
Noah saiu do quarto e nessa altura, Shade apercebeu-se que precisava mesmo de esvaziar a bexiga. O doente da cama ao lado, Barry, acenou-lhe e apercebendo-se do que Shade procurava, disse:
- Rapaz, procura aí, no canto esquerdo da cama! É aí que costumam deixar a arrastadeira!
Shade virou-se, com alguma dificuldade, encontrando o objecto que procurava. Um pouco intimidado pela presença de Barry, ele fechou os olhos. Não costumava ser tímido, mas naquele momento sentia-se frágil. Queria ter aquele momento só para si. Pensou no irmão e rapidamente relaxou. Após algum tempo, colocou a arrastadeira no local onde a tinha encontrado e ajeitou-se na cama, virando-se para o paciente que tinha como colega de quarto.
- Fogo, estava mesmo apertado! - comentou Shade, com um sorriso.
- É normal, meu rapaz, é normal! - respondeu Barry, rindo-se.
- E agora, como é? O que se faz com aquilo?
- Daqui a bocado alguém passa por cá e esvazia o frasco, colocando-o de novo aí para tu fazeres quando precisares. Não te preocupes! Já agora, eu sou o Barry! E tu?
- Eu chamo-me Shade! Muito gosto! - acenou o rapaz, com um sorriso genuíno.
- Estiveste em coma durante uns tempos, Shade! Tiveste sorte! Ficaste aos cuidados do melhor enfermeiro que este pardieiro tem! Foi ele quem vigiou o teu estado todos os dias, várias vezes ao dia. Foi ele quem te deu banho, foi ele quem te mudou as fraldas, essas coisas todas… Ele é muito bom rapaz…
Shade estava admirado!
- A sério? Fraldas? Banho? O senhor conhece aquele rapaz, o Noah?
Barry sorriu.
- Sim, ele cuidou de ti como deve ser! Tu estiveste em coma induzido, devido ao estado em que te encontravas. Quanto ao Noah, eu conheço-o desde pequenino! Andei com ele ao colo e tudo! Olha que neste sítio, se não fosse ele a assumir a responsabilidade sobre ti, às tantas já tinhas batido a caçoleta…
- Porque diz isso?
Baixando o tom de voz, Barry explicou:
- Tu apareceste aqui inconsciente, sem identificação, sem nada. Trazias essa bolsa junto ao peito e depressa se aperceberam que era um diário, mas o Noah não deixou que ninguém mexesse nele. Ainda chamaram a polícia, tiraram as tuas impressões digitais, mas não te encontraram no sistema. Como se aperceberam de que tu eras um sem-abrigo, queriam deixar-te ao Deus-dará, mas o Noah assinou um termo de responsabilidade, responsabilizando-se por ti até que te fosse dada alta. Ele assumiu o compromisso de cuidar de ti e pagar todas as despesas médicas que o hospital tivesse contigo.
Shade estava perplexo! Como é que era possível existirem pessoas assim, tão altruístas, no Mundo? Ficou emocionado e sentiu vontade de chorar. Abraçou-se à sua almofada e enterrou o rosto nela. Não queria que Barry o visse a chorar. Barry levantou-se da sua cama e abraçou o rapaz.
- Então? Não é preciso teres vergonha, filho! Todos precisamos de ajuda, às vezes! Não é preciso chorar! Tens de dar graças a Deus por teres um anjo da guarda como o Noah!
- Não estou habituado a que façam coisas assim por mim, sabe? - respondeu Shade, com voz soluçante.
Barry deu palmadinhas nas costas de Shade e levantou-se, regressando à sua cama.
- Eu vou ter alta daqui a pouco…. Fico feliz que tenhas acordado antes de eu sair daqui meu filho! Sabes? Pareces-me ser um bom rapaz, por isso, eu vou falar com o hospital e assumir as despesas médicas que tiveram para contigo!
Shade levantou a cabeça.
- Não! O senhor precisa do dinheiro! Não o faça! Eu tenho dinheiro! Eu pago as despesas!
Barry riu-se.
- Meu rapaz, eu sou um dos homens mais ricos de White River! Fui vítima de um enfarte e estou aqui há umas duas semanas! Não ficaria em paz comigo mesmo se não te ajudasse de alguma maneira! Tu és de onde? Não me recordo de te ver na cidade…
- Eu sou de Fargo… Uma cidade no Estado da Dakota do Norte. Vim a Grace Falls visitar o meu falecido irmão… - respondeu Shade, recomeçando a chorar.
- Grace Falls? Ohhhhh! Compreendo… - Barry baixou a cabeça, com ar consternado. - Ele…? - Barry temia a resposta àquela pergunta.
- Sim… O meu irmão foi uma das vítimas da Mão Divina…
- Possa…! Lamento muito, meu rapaz! Não sei o que te diga! Se tu és de Fargo, vieste de muito longe! Estavas a regressar a casa a pé? Com este tempo invernoso?
- Bem… Sim…
Uma médica entrou no quarto e deu alta ao velhote. Junto da médica estava a esposa de Barry, uma senhora de 75 anos chamada Edith. Ela era uma senhora cheia de genica, que se vestia de forma jovial, de cabelos pintados e com bastante maquilhagem na cara para disfarçar as rugas. Depois da médica deixar todas as indicações por escrito, virou costas e foi-se embora. Barry virou-se para a mulher e disse:
- Edith, este é o Shade! Shade, esta é a minha linda esposa, Edith!
Edith aproximou-se do jovem e deu-lhe dois beijinhos na cara.
- Que bom! Finalmente acordaste, meu menino! Eu rezei muito por ti!
- Edith, o Shade é da cidade de Fargo, na Dakota do Norte! Ele veio até Grace Falls para visitar a campa do falecido irmão, que morreu por causa daquela coisa da Mão Divina! No caminho de regresso a casa, o Shade foi apanhado por uma tempestade de neve! Não te importas de levantar algum dinheiro para pagar a viagem dele? E de falar com os médicos sobre as despesas dele aqui no hospital? Eu pago todas as despesas!
Edith acenou com a cabeça, condescendente. Ao olhar para Shade, mirou-o de alto a baixo, com um olhar triste.
- Ó meu Deus! Um menino tão jovem e já com uma vida tão sofrida! Lamento imenso pela morte do teu irmãozinho…. Quantas vidas se perderam à custa desse pesadelo! E pensar que o chefe deles era um padre! Valha-nos Deus Nosso Senhor! Cruzes-Credo! - Edith benzeu-se.
Como Barry olhasse sério para a mulher, esta afirmou:
- Eu vou tratar do que me pediste, querido! Precisas de ajuda para te vestires?
- Estou pronto para outra! - respondeu Barry, com ar fanfarrão, enquanto Shade sorria, divertido.
- A sério, não precisam de fazer isso por mim! - insistiu Shade.
- Tu mereces, meu querido, tu mereces! Coitadinho, perdeste o teu irmão! Que idade é que ele tinha? - inquiriu Edith.
- O meu irmão tinha 17 anos… - respondeu Shade, ficando com os olhos marejados de lágrimas.
Edith abanou a cabeça consternada e Barry baixou a cabeça, triste.
- Onde é que este Mundo vai parar, meu Deus? Coitadinho! Tão novo…! - gemeu Edith, saindo do quarto a chorar.
Durante alguns minutos Shade e Barry não disseram nada. Shade chorava em silêncio e Barry disfarçou as lágrimas, vestindo-se e preparando as suas coisas. Ele sabia que o rapaz precisava de um momento sozinho. Com calma e no seu vagar, Barry foi arrumando tudo e respeitou aquele momento de silêncio.
Meia hora depois, Edith entrou no quarto e entregou um envelope a Shade, com um pequeno sorriso.
- Meu querido, tens aqui algum dinheiro para a tua viagem e para comprares alguma comida, está bem? Espero que regresses a casa são e salvo! Os teus pais devem estar mortos de preocupação!
- Os meus pais já morreram… - respondeu Shade, com algum sarcasmo e ironia.
Ao aperceber-se do olhar chocado de Edith e de Barry, Shade apressou-se a dizer:
- Eu estou ao cuidado de uns familiares, não se preocupem!
- Menos mal, meu filho, menos mal! Ninguém tinha contactos teus, ninguém sabia sequer o teu nome, foste alvo de muitas conversas na cidade! - comentou Edith.
Shade torceu o nariz. Não gostava de ser alvo de fofocas. Aquilo podia atrair atenções que ele não desejava. Ao ver a cara dele, Edith rematou:
- Seja como for, já tratei de tudo com o hospital. Já está tudo pago! Os médicos vão dar-te alta dentro de três dias! O enfermeiro Noah cuidará de ti e depois ficou combinado que ele levar-te-á até à estação de comboios para seguires viagem, assim que o tempo o permita!
- A sério? Ainda está mau tempo? - perguntou Shade.
- Oh sim! Não me recordo de uma Primavera tão fria como a deste ano! Já por diversas vezes que os comboios não puderam prosseguir viagem devido ao mau tempo e às tempestades de neve! Tem fé, meu filho! Tudo irá melhorar na tua vida!
Barry e Edith aproximaram-se de Shade e abraçaram-no, enquanto este agradecia toda a ajuda. Depois de se despedirem dele, eles saíram do quarto e fecharam a porta. Shade voltou a usar a arrastadeira, acabando por verter algum líquido para o chão. Totalmente aliviado, o rapaz recostou-se na cama e abriu o envelope que Edith lhe tinha deixado.
- Wow! Dois mil dólares! Tanto dinheiro! - exclamou.
[Continua...]