30 dezembro 2020

Etecetera #2.8

Existem momentos na vida que nos marcam.


As minhas últimas semanas de 2020 foram particularmente impactantes. Porquê? É o que vão descobrir já a seguir!



R.I.P. Namoro
18/03/2020 ~ 20/12/2020


Como se sabe, tudo tem um tempo certo para acontecer. 

O meu relacionamento viveu tempos bem difíceis, até porque começamos a namorar em plena pandemia. Em 9 meses de namoro, acabamos por estar juntos apenas 7 vezes. Devido à distância e ao facto dele trabalhar muito, havendo alturas em que estava praticamente um mês sem tirar nenhuma folga, ficava de facto cada vez mais difícil viver o relacionamento. 


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E porque uma tragédia nunca vem só...



R.I.P. Computador
14/04/2018 ~ 23/12/2020


O meu computador "morreu" a semana passada. Como se meteram as festas e tal, ainda não sei quando terei o computador de volta. O pior de tudo é o facto de ter perdido todos os dados que tinha no computador e não ser possível recuperá-los. 

Assim, boa parte da história "Escrito nas Entrelinhas: Parte 3" e as histórias "Para Além do Arco-Íris" e "Para Além do Para Sempre" foram à vida. Terei de recomeçar a escrevê-las do zero, pelo que de momento, as histórias serão adiadas por tempo indeterminado. Junto com isto foram todas as músicas, documentos, fotografias que eu tinha no computador, onde tinha reunido os 40 anos de memórias minhas. Foi uma perda extraordinariamente inimaginável e uma verdadeira lição para a vida - arranjar um disco externo e ter várias cópias de tudo será algo a fazer no futuro próximo. 


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Cheguei ao Natal deveras desconsolado com tudo isto.

O Natal em si foi muito frouxo. Desconsolado pelo final do namoro e pela morte do meu portátil, acabei por nem me lembrar de acender as luzes de Natal do pinheiro, tanto na véspera de Natal, como no dia de Natal. 


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Dizem que não há duas sem três...



R.I.P. Caos
10/03/2014 ~ 30/12/2020


Eu fui, desde sempre, um amante de cães. Fui criado com cães desde pequeno e sou uma pessoa "canina" - ladro muito, mas não mordo! - A menos que queiram, aí mordo sim! [risos]

O Caos entrou na minha vida há uns anos atrás e tivemos um maior convívio depois da morte da Luna. No princípio, foi um convívio difícil, uma vez que o Caos era um gato diferente de todos os gatos que já conheci e convivi. Ele era arisco, um bocado selvagem, talvez características da raça dele - era um Gato Azul. Ou talvez fossem características de um gato que nasceu na rua.

Só para ficarem com uma ideia, eu precisei de meio ano para perder o medo que ele me ferrasse ou atacasse, quando lhe fizesse festas na cabeça. A medo, lá fiz a primeira vez e aos poucos, ele foi deixando fazer e passou a ser um pouco mais sociável, embora para isso nós tivéssemos que chegar a um "entendimento". 

Ele tinha o espaço dele, eu tinha o meu e ambos compartilhávamos espaços em comum, num misto de cerimónia e respeito mútuos. Com o passar do tempo fomo-nos afeiçoando um ao outro, com ele por vezes a dar-me a honra de me "mimar".

Ele estava doente há cerca de 3 semanas. De repente, começou a mancar da pata esquerda frontal. De início pensei que fosse um mau-jeito que ele tivesse dado na pata e que passaria. Como ele começasse cada vez a ficar mais quieto e até a deixar de comer - um mau presságio - ele foi ao veterinário, que lhe deu um anti-inflamatório e um medicamento para os ouvidos, pois estava com uma otite.

O certo é que o estado do Caos não melhorou. 

Ontem levei-o de novo ao veterinário e durante a consulta ele tossiu, coisa que eu nunca tinha visto ele a fazer. Tossiu durante quase um minuto, ficando com muita atrapalhação - parecia eu, às vezes. O médico, alertado pelo novo sintoma - e eu, relembrando-me do que acontecera com a Luna - fez novas análises ao sangue, que vieram a confirmar o pior. O Caos estava infectado com uma doença incurável - não transmissível aos humanos, mas transmissível entre gatos - e os problemas na pata dianteira tinham-se prolongado para as patas detrás e a coluna. 

O médico deu-lhe vários dias, no máximo, semanas de vida, tempo esse que seria passado em completo sofrimento, visto que o bichinho já não se mexia devido às dores.

Horrorizado com as novidades, perguntei o que se poderia fazer. Afinal, depois do que passei com a Luna, não queria voltar a reviver aquele sofrimento e muito menos que o animal estivesse a sofrer, até acabar por morrer de forma natural. O médico disse que poderíamos adormecê-lo e assim foi...

O Caos partiu hoje, ao meio-dia, de forma serena e pacífica, para o Paraíso dos Gatos.


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Este foi um ano particularmente difícil. 

Vou sair deste ano com muita tristeza e desalento. Completamente desanimado e desesperançoso. 

Talvez, no futuro, as coisas melhorem e, um dia, até consiga olhar para trás e agradecer por tudo isto que passei. 

Por agora, só quero fechar os olhos, chorar e correr, rumo a 2021.

16 dezembro 2020

Escrito nas Entrelinhas: Parte 2 ~ Capítulo 6

 



Podem ler os capítulos anteriores e/ou outras histórias, clicando aqui.


Capítulo 6


*4 de Junho de 2017*


Depois da manifestação em que Takoda e os seus amigos tinham aparecido a dançar e a cantar, a população de Grace Falls levou à letra o lirismo da canção. Toda a cidade ficou com a idade de que eles passavam necessidades! A população organizou-se e não tardaram a levar-lhes alimentos, brinquedos e roupa! Shappa e Chayton ficaram muito surpreendidos pela atitude. Não precisavam de nada, mas ainda assim aceitaram tudo, explicando às pessoas que iriam doar tudo o que recebessem à Reserva Indígena, pois havia muitos ameríndios que passavam fome. Ao fim de pouco tempo, eles já não tinham onde colocar tanta coisa! Depois de colocadas várias hipóteses, eles optaram por fretar um camião que transportasse tudo para a Reserva.


Quanto ao Takoda e aos amigos, estes tinham-se tornado estrelas. Por onde quer que passassem, as pessoas queriam cumprimentá-los e algumas, em particular jovens do sexo feminino, chegavam mesmo a querer trocar contactos e faziam-lhes propostas indecentes! Isto divertia imenso os jovens, que não estavam habituados àquele tipo de galanteios e partilhavam os mesmos com muita naturalidade, às refeições, em casa dos Chayton, entre muita risota. Os pais de Takoda acharam por bem que Takoda e os restantes acompanhassem o transporte das coisas até à Reserva, bem como serem eles a distribuir os bens entre a comunidade. Afinal, tinha sido graças a eles que tinham conseguido obter tanta coisa!


Com a promessa de reverem Matoskah quando regressassem, Takoda e os restantes acabaram por aceitar a missão. Assim, algumas horas mais tarde, ele e os amigos seguiram para a Reserva, entre muitos aplausos, à medida que o camião atravessava a cidade de Grace Falls.


- Finalmente! Vamos ter um pouco de paz! - comentou Shappa.


- Este ambiente era insustentável para o Matoskah. Fizemos bem… Pelo menos assim, ele poderá descansar um pouco antes do funeral do Jules, não é? - questionou Chayton, colocando o braço por cima dos ombros de Shappa.


- De acordo com o doutor Michael, ele regressa a casa depois de amanhã. Precisamos de ter muita paciência com ele, querido. A forma como ele vai reagir a tudo isto, neste momento, é imprevisível. - suspirou Shappa.


- Eu sei que sim. Mas também acredito que seja melhor ele estar presente no funeral do Jules. Conforme a reacção dele, depois encaminhamo-lo para a Reserva ou até mesmo para a nossa aldeia natal… - afirmou Chayton com voz serena, mas determinada.


- É, concordo contigo. Vamos preparar tudo para o receber, então? Quero que o nosso filho se sinta o mais confortável possível… - rematou Shappa, dando um beijo ao marido.


*6 de Junho de 2017*


A tarde estava a chegar ao fim quando uma ambulância parou em frente da casa dos Chayton. Vários médicos e enfermeiros saíram e retiraram uma maca, onde estava Matoskah, ainda adormecido. Shappa, que os aguardava com impaciência, abriu a porta e explicou onde era o quarto do filho. Alguns vizinhos começaram a aparecer na rua, depois de espreitarem pelas janelas o que se estava a passar.


*7 de Junho de 2017*


O dia amanhecera radiante. Takoda e os seus amigos tinham viajado durante a noite, depois de descobrirem que Matoskah já se encontrava em casa. Quando chegaram, perceberam que Chayton e Shappa não estavam em casa. Eles tinham deixado um bilhete escrito em cima da mesa de jantar. Nesse bilhete, eles avisavam de que tinham ido ao mercado comprar frutas e que Matoskah ainda não tinha acordado. Caso Takoda e os restantes chegassem e eles ainda não estivessem em casa, deviam fazer pouco barulho e tomar o pequeno-almoço, aguardando que Matoskah acordasse. Ele tinha sido bastante sedado e poderia reagir mal, caso o acordassem inesperadamente. Takoda, porém, não resistiu. Enquanto os amigos preparavam o café da manhã, ele foi a correr ao andar de cima e entrou no quarto do irmão. Este dormia serenamente. Ele despiu-se e deitou-se ao lado do irmão, feliz. Instantes depois, Matoskah acordou, sobressaltado.




- Hey! Quem és tu?! - perguntou, empurrando Takoda para fora da cama.

 

- Matoskah?! - perguntou Takoda, admirado pela reacção.

 

- Quem és tu, miúdo? Como vieste parar aqui, à minha cama? Onde está o meu ciyé8 , o grande Tatanka22? - resmungou Matoskah, com ar zangado.


- Tatanka? - perguntou Takoda, confuso. - O Tatanka morreu, não foi? Ainda antes de eu nascer… - Eu sou o teu misún17, Takoda… Não te lembras de mim, ciyé?

 

Matoskah levantou-se num ápice, ainda mais zangado!

 

- Tatanka o quê? Tu estás a mentir-me, miúdo! Isso não se faz! Quero ver o meu ciyé, Tatanka! Vai buscá-lo! - gritou, enquanto abanava Takoda com violência.

 

Não tardou muito para que Takoda começasse a chorar. Assustado por ver o irmão agir assim, Takoda fez xixi pelas pernas abaixo. Ao olhar para Takoda a reagir daquela forma, um raio rebentou na cabeça de Matoskah, fazendo com que este fechasse os olhos e tivesse uma visão.


*12 de Novembro de 2016*

 

Matoskah estava ali, deitado naquela mesma cama, na companhia de outro rapaz, cujo nome ele não se recordava. Pareciam estar bem-dispostos e felizes.

 

- “Estás confortável? Queres mais alguma almofada?” - perguntou Matoskah.

 

- “Eu estou bem assim, obrigado!” - respondeu o rapaz, com um sorriso.

 

- “Ainda bem. Fico contente! Que dia que tivemos, hein? Espero que o Takoda esteja bem…” - suspirou Matoskah.

 

- “Ele vai ficar! Acredita em mim! Ele gosta muito de ti, Matoskah! Adora-te!” - comentou o rapaz.

 

- “E eu a ele. Ele é o meu lindo misún, o meu aŋpétu wí18” - respondeu Matoskah, com um sorriso ternurento.

 

- “Awwwww! Vocês são tão fofos! Eu derreto-me todo quando vos vejo juntos…” - suspirou o rapaz que estava deitado ao lado dele.

 

Passado algum tempo, bateram à porta. Matoskah levantou-se, nem se preocupando em vestir algo para proteger a sua intimidade. O rapaz que estava com ele ficou a olhar para o seu corpo nu, embasbacado! Matoskah riu-se divertido, com a cara que o rapaz estava a fazer. Ele aproximou-se da porta e abriu só uma fresta. Quem estava à porta era o tal miúdo, que pelos vistos se chamava Takoda e estava a chorar.

 

- “Então, misún? O que aconteceu?” - perguntou Matoskah, abrindo a porta de imediato.

 

- “Matoskah!” - exclamou Takoda, que se aproximou do irmão e o abraçou. - “Eu tive um pesadelo com aquele menino de hoje à tarde! Ele apareceu e disse coisas… Coisas horríveis! E eu fiquei com tanto medo…! Eu…

 

O pequeno começou a soluçar, ao aperceber-se da presença do rapaz de cabelos ruivos. Matoskah deu-lhe um beijo e sussurrou, com carinho:

 

- “Hoje queres dormir com o mano? Eu vou tratar daquilo, para os papás não saberem de nada! Deita-te ao lado do Jules, está bem? Eu volto num instante, está bem? Tomas conta dele, Jules?

 

Matoskah foi até ao quarto do irmão. A roupa de cama tinha uma grande mancha de xixi. Rindo-se para si mesmo, ele retirou tudo, colocou a roupa a lavar e regressou ao quarto de Takoda, onde colocou roupa limpa na cama.

 

Quando acabou, ele voltou em bicos de pés para o seu próprio quarto. Não queria que os seus pais acordassem. Ao chegar ao quarto, deu com Takoda e o tal rapaz chamado Jules a sorrirem, só com a cabeça de fora do edredão.

 

- Já arrumei tudo e pus a roupa para lavar, Takoda… Os pais não se aperceberam de nada! Vocês estão bem? Espero que o Takoda não te tenha dado trabalho! - comentou, entrando na cama e acomodando-se junto do irmão e do rapaz chamado Jules.

 

- “Trabalho nenhum!” - respondeu Jules, com um sorriso.

 

- “Hummmm, a cama está quentinha! Ainda bem! Já começava a ficar com frio… A nossa casa consegue ser bem fria, às vezes…” - desabafou Matoskah, arrepiando-se de frio.

 

- “Eu aqueço-te!” - exclamou Takoda, abraçando-se a ele.

 

Matoskah suspirou feliz, ao ver Takoda acomodar-se no seu peito. O pequeno não tardou a adormecer.

 

- “Ele já está a dormir? Que aconteceu para tu saíres do quarto?” - perguntou Jules.

 

Matoskah olhou para o irmão, certificando-se que este estava a dormir. Takoda dormia tranquilo. Ele adorava dormir na cama do irmão mais velho.

 

- “O Takoda fez xixi na cama. Ele já não fazia isso há bastante tempo, mas recomeçou pouco depois de virmos para Grace Falls. Ele fica muito envergonhado quando isso acontece. Tem medo que o nosso pai lhe ralhe como quando ele era pequeno…

 

- “É compreensível…

 

- “O meu irmão tem sonhos muito especiais. Aliás, o Takoda é um menino bem especial. Ele consegue comunicar com facilidade com os nagi tanka9 e estes com ele. Sabes? É muito provável que um dia o Takoda se torne um wicasa wacan11.

 

A visão terminou ali.


No primeiro momento, sentiu que tinha vivido aqueles momentos noutra vida! No entanto, tudo parecia tão real! Aquilo era mesmo real! Ao ver Takoda a chorar, assustado e molhado, Matoskah correu para ele.

 




- Takoda… Desculpa-me, misún! Eu…! Eu estou confuso…! Eu não sei o que se passa…! Perdoa-me! - suspirou, abraçando Takoda com força, chorando com ele.

- Ouvimos barulho… Está tudo bem? - perguntaram Chayton e Shappa, que tinham chegado a casa e ao escutarem os gritos de Takoda, galgaram as escadas a correr, assustados com o que poderia estar a acontecer.

- Mãe! Pai! - gritou Matoskah, abraçando os pais. 

- Filho! - gemeram os dois, mal contendo a alegria e o choro.

Com a algazarra, não tardou para que Cetan Nagin12, Maȟpiya Lúta13, Siha Sápa14 e Wakinyan15 viessem ter ao quarto. Emocionados, todos correram para os braços de Matoskah, que rapidamente os reconheceu.

- Amados ciyé! Como é bom rever-vos! Estou tão feliz! - exclamou Matoskah.

Passada a euforia inicial, todos começaram a falar ao mesmo tempo! Shappa insistiu para que fossem tomar o café da manhã, já que ela e o marido tinham comprado algumas das frutas preferidas de Matoskah. Este lá acabou por aceitar, embora tivesse uma pergunta a queimar-lhe os lábios:

Quem era aquele rapaz chamado Jules que lhe tinha aparecido na visão?


*10 de Junho de 2017*


O dia do funeral de Jules chegou, por fim! 





*10 de Junho de 2017*

 

O dia do funeral de Jules chegou, por fim!

 

O dia estava triste, nublado e ameaçava chover a qualquer instante. O tempo parecia partilhar o sentimento que movia a população de Grace Falls, que comparecera em peso na igreja local, a fim de prestar uma última homenagem a Jules.

 

Na verdade, muitos populares tinham ido movidos pela curiosidade, pela pompa e circunstância da cerimónia. Jules iria ter um funeral digno de uma figura importante da nação. Dezenas de cavaleiros fardados marchavam a trote dos seus cavalos, levando o caixão de Jules envolto numa bandeira norte-americana.

 

O Senador Tieman e a sua família seguiam no cortejo fúnebre, juntos com a família Sullivan, enquanto acenavam à população. Os habitantes de Grace Falls batiam palmas e lançavam flores à medida que o cortejo atravessava a cidade. No final do cortejo, todas as pessoas seguiram para dentro da igreja, onde iria decorrer a cerimónia.

 

Para espanto de todos, pouco tempo depois, um novo grupo de indivíduos surgiu, montados a cavalo. Eram os indígenas da aldeia de Matoskah e companhia. À frente deles, vinha o Chefe actual da tribo, Heȟáka Sápa10, acompanhado de Chefes de outras tribos aliadas que faziam questão de estar presentes na cerimónia.

 

A população de Grace Falls começou a cochichar entre si, quando eles pararam em frente da igreja, colocando os cavalos a alimentarem-se com algo que eles traziam em bolsas. Os indígenas entraram na igreja, ajoelharam-se e alguns deles seguiram até junto da família Sullivan. O Chefe Heȟáka Sápa retirou um cocar19 que trazia num saco e entregou-o a Matoskah, para que este fosse colocá-lo sobre o caixão de Jules. 


Desde que tinha acordado, Matoskah ainda não se recordava de muita coisa. Aos poucos, ia-se recordando de Jules, mas ainda não se recordava do que acontecera para estar agora ali, no funeral deste. Matoskah sentia uma forte dor no peito. Os médicos tinham garantido a Shappa e Chayton que era natural o que andava a acontecer e que Matoskah recuperaria completamente ao fim de algum tempo. O Chefe Heȟáka Sápa fez uma vénia aos familiares de Jules e declarou:

 

- Amados irmãos wasichu3! O vosso amado filho Jules, conhecido por nós como Sunka20, passou a prova2 que o tornou um wicasa5! Para a nossa tribo, o Jules Sunka era um takuye1, apesar de ser um wasichu! Toda a nossa comunidade chora e sofre com este terrível acontecimento! Que o nosso bem-amado irmão Sunka consiga seguir em paz, rumo à Boa Estrada Vermelha, onde reside o Grande Búfalo Sagrado! Que ele olhe por nós! Mitakuye Oyasin16!

 

- Mitakuye Oyasin! - responderam os restantes indígenas em coro, fazendo uma vénia ao caixão de Jules e levando a mão esquerda ao peito.

 

Eddie, Laura e Bianca agradeceram, emocionados. Toda a população sussurrava entre si, alguns em tom jocoso. O Senador Tieman aproximou-se e com reverência, exclamou:

 

- Ó meu bom e velho amigo, Chefe Heȟáka Sápa! É um gosto para mim, revê-lo! Lamentável… É que seja nestas circunstâncias… - corrigiu, olhando rapidamente para Eddie.

 

O Chefe Indígena sorriu para Tieman e ainda falaram alguns segundos, para espanto da maioria da população de Grace Falls.

 

Father Simon observava a cena com relativo interesse. Ele certificava-se que tudo estava em ordem, já que a televisão estava ali presente, para filmar a cerimónia. Matoskah depositou o cocar em cima do caixão de Jules. Ao fazê-lo, teve uma nova visão.




*3 de Dezembro de 2017*

 

Matoskah estava perto de uma linda cascata. Os seus amigos estavam nus, tal como ele e bem animados, enquanto se sentavam muito divertidos à volta de uma fogueira, para se aquecerem. Ele dirigiu-se a uma tenda, onde foi buscar comida e bebida para todos!

 

Sentia-se eufórico!

 

Matoskah puxou Jules para a beira dos seus amigos e apresentou-o:

 

- “Amados ciyé, hoje é um dia muito feliz para a nossa tribo! Além de eu ter passado nas provas que prepararam para mim, o meu colega e amigo Jules passou na prova que o torna um dos nossos! Saudemos o nosso novo ciyé! Temos de pensar num nome para ele! Mas, antes disso, brindemos!

 

- “Assim é que se fala, Matoskah! Taŋyáŋ yahí21, misún Jules!” - gritou um dos amigos, sendo seguido pelos restantes.

 

Lágrimas rolavam pelo rosto de Matoskah. As visões sucediam-se.

 

*4 de Dezembro de 2017*

 

- “E ontem? Foi bom? Gostaste?” - perguntou Jules, com carinho, enquanto acariciava o rosto de Matoskah.

 

Matoskah aproximou-se de Jules e beijou-o.

 

- “Poder deixar dentro de ti a minha essência… Foi bom, sim!

 

Matoskah levou as mãos à boca. Queria dar um berro. Antes que o pudesse fazer, uma nova visão turvou-lhe os pensamentos.


*21 de Maio de 2018*
 

Jules cantava algo, com olhar perdido, enquanto com uma mão espalhava algo sobre os objectos do quarto que ele e Matoskah tinham criado e com a outra cortava uma e outra vez os pulsos, que jorravam sangue intensamente!
 
- “Ó Jules! O que estás a fazer?” - gritou desesperado, aproximando-se de Jules.

- “Não te aproximes mais, Matoskah!” - vociferou Jules. - “Eu não quero conspurcar-te com o meu pecado! Tu não mereces isso!

- “Mas…! Tu estás doido! Jules!

Jules verteu um enorme galão sobre si. Um forte odor a gasolina espalhou-se de imediato pelo espaço.
 
- “O que estás a fazer? Jules!” - gritou Matoskah.
 
Jules sorriu. Mas era um sorriso triste.
 
- Matoskah…! Não imaginas como fico feliz que me tenhas encontrado…! Mas… É tarde demais…!
  
Os gritos de Matoskah desvaneceram-se. Horrorizado, ele viu Jules a acender e a atirar um isqueiro para o chão à sua frente! A chama percorreu de imediato todo o local! O fogo começou a destruir tudo o que Jules e Matoskah tinham levado para ali!
 
- “A morte do EU… Esta sim… É a liberdade absoluta! Obrigado, meu amor! Obrigado por todos os belos momentos que passamos juntos!
 
De repente, o fogo deu uma reviravolta e Jules entrou em combustão instantânea!





- “Perdoa-me, Matoskah! Nada temo, porque a Mão Divina me irá acolher! Nada temo, porque…”  - gritou Jules, atirando-se pela janela de um terceiro andar!

- “Jules! Nããããããooooo!” - gritaram o Matoskah da visão e o Matoskah que estava em frente do caixão, totalmente horrorizados!

Finalmente, Matoskah lembrava-se de tudo! 

Perante aquele grito, toda a gente se assustou, pensando que o rapaz estava a ter um surto psicótico. Matoskah chorava e gritava, desesperado! Os amigos de Matoskah correram para junto dele e tentaram acalmá-lo! 

Muitas pessoas, perante o choro dele, choravam também. Outras murmuravam, maldosamente, que o rapaz estava a fazer teatro para que tivessem pena dele. No entanto, via-se perfeitamente que o rapaz estava a sofrer muito! Eddie Sullivan aproximou-se dele a chorar e virando-se para a população em peso, berrou, zangado:

- Muitos de vocês só estão aqui por cerimónia, para aparecerem com essas caras mal lavadas na televisão! Já estas pessoas, que vocês menosprezam, sentem a dor, a verdadeira dor pelo meu filho ter morrido! Tenham vergonha! Respeitem a dor alheia! Muitos de vocês têm filhos da idade do meu Jules! Estão, por isso, sujeitos a passar por este pesadelo também!

Matoskah queria abraçar Takoda, mas este ficara em casa, após muita insistência dos pais e dele próprio. Receavam que ele ficasse traumatizado. Assim, quando Eddie se aproximou, Matoskah abraçou-se a ele e chorou imenso! Os amigos de Matoskah também se abraçaram a eles. Father Simon emocionou-se com aquilo e comentou:

- Bonitos são os caminhos do Senhor, nosso Deus! Só Ele para trazer algo de bom perante uma tragédia como esta…! Peçamos perdão ao Senhor, meus irmãos, porque somos todos pecadores!

Toda a população ficou surpreendida perante as palavras de Father Simon. Muitos fecharam os olhos, enquanto rezavam e pediam perdão. 

De repente, escutou-se um trovão ao longe.



Aparece um misterioso guerreiro! Quem será ele?!?


Um homem surgiu à soleira da porta, momentos depois. Era um guerreiro indígena e trazia Takoda consigo, montado a cavalo. Os Chefes Indígenas abriram a boca, muito espantados. Expressaram a sua admiração ao falarem entre si, no seu dialecto. Os restantes indígenas aproximaram-se do guerreiro e de Takoda. Este saltou do cavalo, tendo o misterioso homem feito o mesmo. O guerreiro indígena colocou o cavalo junto aos outros cavalos e entrou na igreja, ficando encostado à porta. Todos os indígenas o observavam com espanto e respeito. As restantes pessoas viraram-se para trás, para o ver melhor.

O homem estava em tronco nu. Era um homem muito alto, com um corpo de fazer inveja a qualquer mortal. O seu cabelo era comprido, em tons musgosos e estava preso no alto da sua cabeça. Já os seus olhos eram uma mistura de tons entre o cinzento e azul-glacial. Com ar sereno, o misterioso guerreiro sorriu para Takoda, que lhe retribuiu o sorriso.

Os amigos de Matoskah e Takoda aproximaram-se deste e do misterioso homem. Takoda e os amigos deram as mãos, enquanto o homem colocava a sua mão esquerda sobre o ombro de Takoda. Este começou a cantar:




[Takoda]

Sabes? Os meninos,
São anjos sem asas!
Que o Céu nos envia,
Para sermos melhores!
 
São eles quem nos mostra,
Qual é o caminho!
Onde está a beleza,
Do nosso destino!

Quando um menino ri,
O sol aparece!
Tudo fica bonito,
O Mundo floresce!
 
A vida continua!
Encontramos o caminho!
E aí, nós percebemos
Que ainda estamos vivos!
 

- Meu Deus! O Senhor enviou-nos um Anjo! Perdoa-nos Senhor, que somos pecadores! - exclamou Father Simon, enquanto chorava copiosamente, ajoelhando-se e dando as mãos aos seus acólitos.
 
Todas as pessoas presentes na igreja, com a excepção de Matoskah - que ficou embasbacado a ver o irmão e os seus amigos a cantar - deram as mãos e ajoelharam-se a chorar, emocionadas! Um raio de sete cores desceu dos céus e envolveu o misterioso indígena e o pequeno Takoda! Este virou-se para o homem misterioso e sorriu para ele, desafiando-o a cantar consigo:
 

[Takoda e ???]
 
Os meninos não morrem!
 

[Cetan Nagin, Maȟpiya Lúta, Siha Sápa, Wakinyan]
 
Os meninos não morrem!

 
[Takoda e ???]
 
Nós partimos para o Céu!
 

[Cetan Nagin, Maȟpiya Lúta, Siha Sápa, Wakinyan]
 
Nós partimos para o Céu!
 

[Takoda e ???]
 
Mas permanecemos na alma de quem nos ama!
Abre as tuas asas
E voaremos juntos!
 

[Takoda e ???]

Os meninos não morrem!
 
[Cetan Nagin, Maȟpiya Lúta, Siha Sápa, Wakinyan]

Os meninos não morrem!
 
[Takoda e ???]

Eles deixam-nos por um tempo!
 
[Cetan Nagin, Maȟpiya Lúta, Siha Sápa, Wakinyan]

Eles deixam-nos por um tempo!
 
[Takoda e ???]
 
Enquanto reúnem estrelas,
E nascem de novo,
Junto de quem os ama!
 
[Takoda]
 
Nos dias de hoje,
Os meninos, por esse Mundo fora...
Sofrem por ter Fome,
Sofrem por ter Frio,
Sofrem por ter Medo,
Por não poderem dormir debaixo de um tecto aconchegante…
 
A Terra chora!
O Céu chora!
Eles choram de todas as vezes que um menino
Chora em silêncio!





A dada altura, borboletas e pétalas de flores caíam do céu, envoltas no raio arco-íris, que nesta altura já iluminava Takoda, os amigos que cantavam com ele e o homem misterioso! As pétalas desvaneciam-se ao tocar no solo, como se fossem flocos de neve!


As borboletas seguiam para junto de todas as famílias ali presentes que tinham perdido jovens, vítimas de suicídio, nos últimos dois anos! Ao tocarem nelas, as borboletas voavam para junto de Takoda e do misterioso indígena, cujo corpo irradiava uma forte luz dourada!

 

[Takoda e ???]
 
Os meninos não morrem!

 
[Cetan Nagin, Maȟpiya Lúta, Siha Sápa, Wakinyan]
 
Os meninos não morrem!

 
[Takoda e ???]
 
Nós partimos para o Céu!

 
[Cetan Nagin, Maȟpiya Lúta, Siha Sápa, Wakinyan]
 
Nós partimos para o Céu!
 

[Takoda e ???]
 
Mas permanecemos na alma de quem nos ama!
Abre as tuas asas
E voaremos juntos!


[Takoda e ???]
 
Os meninos não morrem!

 
[Cetan Nagin, Maȟpiya Lúta, Siha Sápa, Wakinyan]
 
Os meninos não morrem!


[Takoda e ???]

Eles deixam-nos por um tempo!

 
[Cetan Nagin, Maȟpiya Lúta, Siha Sápa, Wakinyan]

Eles deixam-nos por um tempo!
 

[Takoda e ???]
 
Enquanto reúnem estrelas,
E nascem de novo,
Junto de quem os ama!


[Takoda e ???]
 
Os meninos não morrem!

 
[Cetan Nagin, Maȟpiya Lúta, Siha Sápa, Wakinyan]
 
Os meninos não morrem!


[Takoda e ???]

Eles deixam-nos por um tempo!

 
[Cetan Nagin, Maȟpiya Lúta, Siha Sápa, Wakinyan]

Eles deixam-nos por um tempo!

 
[Takoda e ???]
 
Permanecemos na alma de quem nos ama!
Abre as tuas asas
E voaremos juntos!

 
[Takoda]
 
Querido Jules!

 
[Cetan Nagin, Maȟpiya Lúta, Siha Sápa, Wakinyan]
 
Querido Jules!

 
[Takoda]
 
Meu amado ciyé!

 
[Cetan Nagin, Maȟpiya Lúta, Siha Sápa, Wakinyan]
 
Meu amado ciyé!
 

[Takoda]
 
Não me deixes, nunca!
Fica comigo!
Porque eu preciso de ti!


Matoskah não conseguiu controlar mais as suas emoções! 


Chorou e uivou, ajoelhando-se perante aquele cenário! Por fim, a dor que sentia, libertava-se do coração dele! Durante alguns segundos, ele podia jurar que tinha visto Tatanka22, Jules23, Daniel23 e Kris23 a dançarem felizes, envergando lindos fatos de cerimónia! Eles dançavam ali mesmo, à frente dele!


 
[Cetan Nagin, Maȟpiya Lúta, Siha Sápa, Wakinyan]
 
Os meninos não morrem!
Nós partimos para o Céu!
 

[Takoda]
 
Os meninos não morrem…

 

Quando Takoda acabou de cantar, o raio de luz desvaneceu-se. O misterioso guerreiro virou costas e desapareceu. O céu, que se tinha mantido limpo e solarengo durante alguns minutos, voltou a ficar taciturno. Toda gente chorava e batia palmas, emocionada!

 

- Takoda! - gritou Matoskah, ao ver o seu amado misún a revirar os olhos e a cair para o lado, inconsciente!

 

Notas do Autor:
 
Embora já tenha publicado algumas destas notas, vou repostar todas as que aparecem neste capítulo, para tornar mais fácil a leitura da história para quem não tem acompanhado a mesma desde o princípio, no volume anterior.
 
Junto a estas notas, adicionei outras, para os leitores irem acompanhando e aprendendo um pouco mais sobre a linguagem e cultura indígena. Todas as notas estão distribuídas pela ordem em que surgem neste capítulo e não pela ordem numérica.


8 - Irmão mais velho, quando é um rapaz a dizer;
22 - “Escrito nas Entrelinhas: Parte 2”;
17 - Irmão mais novo, quando é um rapaz a dizer; 
18 - Sol;
9 - Grandes Espíritos;
11 - Curandeiro. Matoskah aqui quer dizer que Takoda se tornará um Shaman e será o braço direito do líder da tribo que Matoskah um dia criará;
12 - Falcão das Sombras;
13 - Nuvem Vermelha;
14 - Pé Preto;
15 - Pássaro do Trovão;
10 - Alce Negro;
19 - O Cocar é um adorno usado por muitas tribos indígenas americanas na cabeça. Pode servir simplesmente como ornamento, embora na maioria das vezes seja uma representação do status que cada um possui dentro da tribo. Geralmente, os cocares são confeccionados com penas, presas a uma tira de couro;
3 - Homem-branco;
20 - Cão. Além de ser o nome que Matoskah e os amigos decidiram para Jules, representando a Amizade e a Lealdade, também se refere a acontecimentos que ocorreram em “Escrito nas Entrelinhas: Parte 1”;
2 - Acontecimentos que ocorreram em “Escrito nas Entrelinhas: Parte 1”;
5 - Homem. Nesta história, os guerreiros indígenas tornam-se maiores de idade aos 17 anos. No entanto, para serem considerados “wicasa” aos olhos dos restantes membros da tribo, eles submetem-se a uma prova ou a um conjunto de provas, geralmente provas físicas, que exploram as suas aptidões naturais e talentos;
1 - Familiar;
16 - Expressão indígena que significa “Estamos todos interligados!” No texto, eu traduzi como “Somos todos Um!”;
21 - Bem-Vindo;
23 -
Escrito nas Entrelinhas: Parte 1”;


[Continua...]

13 dezembro 2020

Escrito nas Entrelinhas: Parte 2 ~ Capítulo 5

 


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Capítulo 5


- Claro que sim…. É só que…. Estou em choque! Aliás, acho que estamos todos… - respondeu Eddie, com a esposa e a filha a acenarem veemente com a cabeça de seguida.


Shappa fez-lhes uma vénia.


- Eu peço-vos desculpa. Talvez seja melhor irmos embora, Chayton… - rematou, levantando-se. 


Eddie levantou-se antes de Chayton e agarrou o braço de Shappa.


- Não! Por favor, fiquem! Estamos todos muito perturbados com o que aconteceu! Eu é que vos peço desculpas… De facto, eu agi um pouco mal perante vocês quando chegaram à Grace Falls…


Chayton riu-se.


- De facto, esta cidade tem muito que se lhe diga, Eddie! Nós chegamos cá há pouco tempo e já nos apercebemos de uma série de coisas…. - espicaçou.


Eddie fez-se desentendido.


- Hã? A sério?


Chayton prosseguiu.


- Eu sei que você sabe do que eu estou a falar…


Bianca levantou-se, enervada.


- Olhem lá, estão todos com tantos rodeios porquê? Vocês trabalham para o FBI, certo? O meu pai contactou o FBI para compreender o que se passou para o meu irmão ter cometido suicídio… Mas eu acho tudo isto muito mal contado! O meu irmão não era desses!

- De facto, tens toda a razão. O Jules era um menino de bem! E é por isso mesmo que eu decidi abrir o jogo com vocês. Quero compreender completamente o que se passou com ele para isto ter acontecido! - suspirou Shappa, triste.





Bianca replicou, ainda mais enervada:

- Você tem a certeza que é só isso? Não estará a querer acalmar a sua consciência por nada ter conseguido fazer pelo seu filho? Perdeu um, tem outro filho em coma agora… E o meu irmão, que você considerava um filho, está morto! Não é por nada, mas você não tem lá muita sorte! Talvez devesse consultar uma bruxa…! Talvez devesse consultar aquela médium aqui da cidade, a Agatha! Quem sabe ela vos possa ajudar?!?

Laura levantou-se e deu uma bofetada à filha.

- Bianca Sullivan! Mas que modos de falar são esses? Tento na língua! Não foi esta a educação que eu e o teu pai te demos!

Bianca virou costas a chorar e galgou as escadas a correr, fechando uma porta com toda a força.

Laura virou-se para Chayton e Shappa que tinham ficado visivelmente incomodados com a situação.

- Por favor, desculpem a atitude da nossa filha… Ela ainda não se resignou com o que aconteceu!

Shappa e Chayton levantaram-se e fizeram uma vénia.

- É melhor nós irmos andando. Posso ir buscar o Takoda? - perguntou Chayton, enquanto ele e Eddie seguiam para o jardim interior.

- Shappa, eu peço uma vez mais desculpas pelo que a Bianca disse. Ela não tinha o direito de falar assim consigo…

- Ela tem todo o direito. Eu, de facto, tenho falhado como mãe…. Perdi o Tatanka. Perdi o vosso Jules. Tenho o meu Matoskah em coma, escondido num sítio qualquer do governo… Ups!




Laura ficou abismada, enquanto Shappa suspirava nervosa.

- Meu Deus… O que é que eles estão a fazer ao seu filho, minha querida? - perguntou Laura, abraçando Shappa.

- Eu… Eu não posso… Eu não devo falar sobre isso… Nem o meu marido sabe de nada… - retorquiu Shappa, baixando a voz.

- Você vai ficar bem? O que se está a passar?

Takoda apareceu na sala com o pai e com Eddie. Todos vinham bastante animados. Shappa sorriu-lhes e Takoda correu para os braços da mãe dando-lhe um forte abraço.

- Voltaremos a ver-nos em breve! - rematou Shappa.

Laura assentiu com a cabeça, enquanto as duas mulheres trocavam um olhar.

- Outra coisa, antes de irem…. Podemos ficar com os vossos contactos? - perguntou Eddie.

- Claro que sim, aqui estão! - respondeu Chayton, escrevendo os dados num pedaço de papel que Laura lhe entregou.

- Cuida-te, Takoda! - suspirou Eddie, um pouco triste.

Takoda voltou atrás e abraçou Eddie. Este abraçou o pequeno e afagou os cabelos dele. Laura emocionou-se com o gesto. Eddie estava a ficar bastante afeiçoado ao pequenito. A perda de Jules estava a fazer Eddie transferir os seus sentimentos para Takoda.

- Eu gosto muito de si, tio Eddie! Posso vir cá a casa mais vezes? - inquiriu Takoda, com um sorriso.

- Ó filho, tu vens cá quando quiseres! Se o tio Eddie ou a tia Laura não estiverem em casa, a Maurice avisa-te e prepara algo para tu comeres! - respondeu Eddie, enquanto uma lágrima rolava pelo seu rosto.

- Vamos, filhote! - exclamaram Shappa e Chayton, prestes a entrar no carro.

- Muito obrigado! Adeus! - rematou Takoda, correndo para o jipe dos pais, que partiu a grande velocidade instantes depois.

- Ai ai… - suspirou Eddie, ao fechar a porta, cabisbaixo.

Laura aproximou-se do marido e abraçou-o em silêncio.

- Que idade tem o Takoda?

- Ele fez 9 anos em Março. Porquê? - inquiriu Eddie.

- Oh, por nada… Tu e ele parecem ter muita afinidade… Ainda me recordo dos tempos em que tu falavas mal dos indígenas… - espicaçou Laura.

Eddie aproximou-se de um balcão no fundo da sala e preparou um whisky.

- Pela boca morre o peixe, não é? De facto, já fui assim. Mas depois de ter conhecido estes miúdos, isso mudou. Ele e o irmão dele são impecáveis! Tenho a certeza de que vais gostar deles também, Laura! É graças a eles que os meus negócios vão de vento em polpa! - resmungou, bebendo um copo de whisky de um só trago.

Laura aproximou-se de Eddie e deu-lhe um beijo na testa.

- Eu estou só surpreendida, mas no bom sentido. É bom de ver-te assim, querido. Vou dormir, não te demores!

- Está descansada, vou só fumar um cigarro e já vou ter contigo. Até podemos pensar em fazer um Takoda só para nós… O que me dizes? - comentou Eddie, com ar malicioso.

Laura abanou a cabeça, riu-se e subiu as escadas, rumo ao quarto.  


*26 de Maio de 2017*


Bianca telefonou a pedir desculpas a Shappa. Esta aceitou as desculpas imediatamente e convidou-a para tomar um chá de ervas na sua casa. Bianca aceitou e mais calma, conversou durante bastante tempo com Shappa, que lhe expôs algumas das suas primeiras descobertas relativamente aos suicídios que estavam a ocorrer em Grace Falls. Perante aquele gesto de confiança, Bianca prometeu colaborar com Shappa, em segredo. Ambas concordavam que algo estranho se passava na cidade.


*1 de Junho de 2017*


Era já bastante tarde quando a família Sullivan se sentou à mesa para jantar. Naquele dia, eles tiveram de prestar novas declarações ao FBI. Lá, ficaram a saber que os restos carbonizados de Jules, seriam entregues em poucos dias. Em breve seria possível marcar uma data para o funeral. Como era hábito, Eddie Sullivan ligou a televisão, enquanto Maurice colocava a comida na mesa. Dois jornalistas apareceram de imediato. Uma voz-off falou:

- “Em directo, dos nossos estúdios em Grace Falls, a Edição da Noite da GFNews!

- “Olá senhores telespectadores, eu sou a Cher Salles!

- “Olá senhores telespectadores, eu sou o Mitch Ohlman!

A câmara voltou-se para Cher que começou a sumarizar as notícias que faziam furor naquele dia. Depois disso, as câmaras voltaram-se para Mitch, que foi explicando ao longo da emissão as notícias que Cher havia sumarizado, intercalando com pequenas reportagens. Eddie, Laura e Bianca estavam a comer a sobremesa, quando Cher mudou o seu tom de voz e suspirou:

- “… Em outras notícias... Já só temos mais duas para dar hoje, mas ambas bastante importantes para a nossa comunidade. A GFNews soube que o corpo de Jules Sullivan será entregue nos próximos dias, para que a família possa, por fim, fazer o funeral. O caso do jovem Jules teve impacto a nível nacional, ao ponto do próprio Senador Tieman estar presente na cerimónia. O funeral de Jules Sullivan ficou marcado para o dia 10 de Junho.

- Mas… Que raios? Como é que eles já sabem disto? Ainda por cima, vocês ouviram aquilo? Eles anunciaram a data do funeral, algo que nem nós sabíamos! - exclamou Eddie, surpreendido.

- Eu vou ligar aos Chayton, para saber o que se passa…! - exclamou Laura, admirada.

Shappa e o marido ainda estavam a caminho de casa. Eles tinham estado fora o dia todo, pois tinham ido visitar Matoskah, que continuava internado. Ficaram bastante admirados com a novidade que Laura lhes transmitira.

- Eles também não sabiam de nada, vejam lá vocês! Estiveram na clínica onde está o filho deles! Ao que tudo indica, o Matoskah será transferido para casa daqui a três ou quatro dias! - comentou Laura, depois de terminar a chamada.
 
- Menos mal, menos mal… - respondeu Eddie, ainda surpreso. - Talvez não seja má ideia ligar para a televisão a saber mais informações. Esta informação da data do funeral já estar marcada…. É bizarro! Afinal, nós somos a família e não sabemos de nada?

O telefone de casa tocou.

- Quem será a esta hora? - questionou-se Bianca.

Maurice já tinha ido para casa, pelo que Bianca pegou no telefone e atendeu. Instantes depois, chamou o pai.

- Pai! É para ti! Um fulano qualquer chamado Lucius…

- Lucius…? - perguntou Eddie, levantando-se da mesa e correndo para o telefone.

Na televisão, depois do ar sério que assumira ao dar a novidade sobre Jules, Cher abriu os braços e levantando-se, seguiu na companhia de Mitch, até uma zona do estúdio onde existia um grande ecrã por detrás deles. Com um sorriso apaziguador, Mitch declarou:

- “A cidade tem sido alvo de vários eventos nos últimos dias. Hoje, ocorreu uma manifestação pacífica e bastante animada, a favor do povo ameríndio e dos indígenas que actualmente vivem na nossa cidade! Veja o que aconteceu!







Uma jornalista apareceu no ecrã. Inúmeras pessoas agitavam bandeiras e cartazes com mensagens de amor, paz e esperança. Havia muitas bandeiras arco-íris, tambores e animação. Escutavam-se cânticos indígenas. Eddie colocou a emissão da televisão em Stop, para poder concentrar-se na chamada, enquanto Laura e Bianca olhavam para ele. Laura foi buscar cafés para os três. Passados alguns minutos, Eddie desligou. O seu rosto estava lívido e os seus olhos brilhantes.

- Então querido, quem era? Quem era o tal fulano? Alguém do teu trabalho? - questionou Laura, quando Eddie se sentou à mesa.

Eddie ficou alguns momentos sem dizer nada. Rodou a colher na sua chávena de café. Olhou para Laura e depois para Bianca. Suspirou.

- Quem nos ligou foi Lucius, Lucius Tieman. Ele é o filho do Senador Tieman. O futuro candidato e quem sabe, futuro Presidente dos Estados Unidos da América!

- Ó meu Deus! - exclamaram Laura e Bianca, admiradas.

- Bem podem dizê-lo, meninas…! O Tieman tinha encarregue alguém de nos avisar sobre o dia do funeral, mas pelos vistos quando ligaram cá para casa, ninguém atendeu! Entretanto, um dos assessores do Senador entrou em contacto com a televisão, pois ele disse que fazia questão de estar presente na cerimónia! Os Chayton ainda não tinham sido informados, só amanhã de manhã iriam saber disto também! O filho deles regressará a casa daqui a dois ou três dias. Está totalmente ilibado de qualquer acusação no que diz respeito à morte do nosso menino. O Matoskah está inocente…

- Ó meu Deus! O que terá acontecido ao Jules para ter feito aquilo? - questionou-se Bianca, desalentada.

Eddie fungou.

- O Lucius aconselhou-nos a darmos uma boa vista de olhos nas coisas dele, filha. Temos de ser fortes… Por nós e pelo Jules. Entretanto, vamos lá a ver o que se passou na tal manifestação de hoje!

Laura pegou no comando da televisão e pressionou o botão Play, retomando a emissão a partir do momento em que esta tinha sido parada. A jornalista que estava a cobrir o evento reapareceu no ecrã e afirmou:

- “A dada altura, um grupo de jovens indígenas verdadeiros apareceu. Entre eles, encontrava-se Takoda, um rapaz de 10 anos, que em Outubro passado impediu um assalto ao Millennium Eagle Bank, com a ajuda do seu irmão, o índio Matoskah, na altura com 16 anos! Matoskah é o jovem indígena que se encontra actualmente em estado de coma no hospital da cidade. Quanto aos restantes jovens, eles têm idades compreendidas entre os 18 anos e os 21 anos.

No ecrã apareceram Cetan Nagin, Maȟpiya Luta, Siha Sapa, Wakinyan e Takoda. Eles envergavam um lençol branco. Takoda, por ser o mais novo do grupo, colocou-se ao centro. Não tardou muito para que eles começassem a dançar e a cantar!




[Takoda]

Pobre dos ricos que tanto têm!

[Cetan Nagin, Maȟpiya Luta, Siha Sapa, Wakinyan]

Mas pra que serve tanto dinheiro?

[Takoda]

Faltam os sonhos!
Falta a vontade!


[Cetan Nagin, Maȟpiya Luta, Siha Sapa, Wakinyan]

Faltam o tempo e a liberdade
Vivem com medo de perder algo!
Sobra arrogância, sobra ganância!

[Takoda]

Faltam o tempo e a esperança!

[Cetan Nagin, Maȟpiya Luta, Siha Sapa, Wakinyan]

Faltam a brisa e o sol da manhã!
Pobre dos ricos que não conhecem toda magia da liberdade!


De repente, Takoda, Cetan Nagin, Maȟpiya Luta, Siha Sapa e Wakinyan retiram o lençol que lhes cobria o corpo, deixando-os totalmente nus! Com visível orgulho e perante uma plateia em êxtase à volta deles, os jovens prosseguiram com a canção!


[Takoda, Cetan Nagin, Maȟpiya Luta, Siha Sapa, Wakinyan]

Não tenho nada e tenho, tenho tudo!
Sou rico em sonhos e pobre, pobre em ouro!
Do que me importa se todo esse dinheiro,
Não compra amigos, estrelas, o amor verdadeiro!

Não tenho nada e tenho, tenho tudo!
Sou rico em sonhos e pobre, pobre em ouro!
Do que me importa se todo esse dinheiro,
Não compra amigos, estrelas, o amor verdadeiro!



- E esta hein?! Estes miúdos devem ser criados com fertilizante! Isto deve ter sido ideia do Takoda! É assim mesmo, filho! - retorquiu Eddie, entre gargalhadas, enquanto Bianca e Laura coravam que nem tomates ao verem a plenitude dos rapazes na televisão!

Os rapazes ameríndios continuaram a cantar a encantar a multidão durante alguns minutos. Todas as pessoas presentes na manifestação riam, dançavam e saltavam, animadas e felizes!

A emissão retomou aos estúdios da GFNews, no preciso momento em que Cher comentava:

- “Oh Mitch, quem me dera ser vinte anos mais nova! Garanto-te que estes miúdos não me escapavam! Já não se fazem homens assim! Tu viste bem o tamanho? Ah ah ah ah!

Mitch recebeu indicações pelo auricular e olhando para as câmaras, comentou entredentes:

- Estamos em directo, as pessoas escutaram o que tu disseste…

Cher riu-se nervosa e perante as câmaras, tentou disfarçar:

- “Que grande animação, não acharam senhores telespectadores? A isto é que se chama uma animação de rua! Até dá vontade de brincar aos índios e aos cowboys! Ah ah ah ah!

Como Cher estava a enterrar-se cada vez mais, Mitch decidiu tomar o controlo da emissão.

- “Este foi o apogeu desta manifestação que contou com a autorização da polícia local. Segundo pudemos apurar, os jovens indígenas contactaram a polícia e explicaram o que pretendiam fazer antecipadamente, tendo-lhes sido concedida autorização, a regime excepcional. A GFNews aproveita para lembrar aos cidadãos que não é possível andarem completamente nus pelas ruas, já que isso é considerado um atentado violento ao pudor. Essa punição pode dar até 1 ano de prisão.

- “Dá para perceber porquê, ah ah ah ah!” - comentou Cher, rindo-se com grande espalhafato.

Mitch apercebeu-se de que ela não estava em condições de prosseguir com a emissão. Antes que as coisas piorassem ainda mais, ele rematou, com um sorriso amarelo:

- “Bom, senhores telespectadores, muito obrigado por terem ficado desse lado! Este é o final da Edição da Noite da GFNews! Boa noite e até amanhã!

- Corta! Está feito! - gritou alguém por detrás das câmaras.

- Foda-se! Cher, tu queres dar cabo das audiências? Tu és doida? Tens noção do que acabaste de fazer em directo? - resmungou Mitch, zangado.

A jornalista virou costas e foi meio a cambalear para o seu camarim. Mitch estranhou a atitude. Ultimamente, Cher andava a beber mais do que o habitual. Cansado e aborrecido, Mitch dirigiu-se ao seu próprio camarim. Estava a desmaquilhar-se e a escolher a roupa que iria vestir para se ir embora para casa quando de repente o director da estação entrou de rompante pelo seu camarim. Vinha com um ar bastante feliz.

- Mitch! Fantásticas notícias! Este segmento final rebentou com as audiências! Parabéns! O povo adorou a última notícia e já chovem comentários na página do Criss-Cross da estação, a propósito dos comentários da Cher sobre os rapazes indígenas! Parabéns!

O jornalista olhou para o director do canal com desdém. Pelos vistos, Cher tinha-se safado, mais uma vez!

- Raios partam aquela filha da puta! Foda-se! Ainda não foi desta! - resmungou Mitch, entredentes.




*Duas horas mais tarde, numa casa algures em Grace Falls…*


[Televisão]


Não tenho nada e tenho, tenho tudo!
Sou rico em sonhos e pobre, pobre em ouro!
Do que me importa se todo esse dinheiro,
Não compra amigos, estrelas, o amor verdadeiro!


Um dedo carregou no botão Stop, parando a emissão, no preciso momento em que Takoda e os seus amigos ficavam num ângulo onde mostravam os seus atributos com orgulho para a câmara da televisão.

- Sim…! Que miúdos deliciosos…! Takoda…! Que rapazinho abençoado! Tu és o melhor deles todos...! Takoda…! Tu vais ser meu…! A bem ou a mal! Mas vais ser meu! Oohhhh…! - gemeu uma voz arfante e excitada, enquanto expressava o seu desejo, tocando ao de leve no ecrã da televisão.


[Continua...]