14 outubro 2019

Vírgulas do Destino: Meandros da Vida ~ Capítulo 2


Vírgulas do Destino: Meandros da Vida - Capítulo 2


Encontrei o rapaz a acender um pauzinho de incenso. Dentro da tenda, o ambiente era intimista, mas acolhedor. Algumas velas pequeninas ardiam aqui e ali. Uma música suave ecoava pelo espaço. O rapaz sorriu-me enquanto se servia de um chá e disse:

- Boa noite! Faz o favor de te sentar!

Assenti com a cabeça, murmurando timidamente “boa noite”. Pousei as minhas coisas. Estava um bocadinho nervoso. O rapaz prosseguiu:

- Então, como te chamas e o que te traz até cá?

Sorri um pouco e respondi:

- Eu sou o Caim. Estou de visita a Portugal. Ao passar por aqui, apercebi-me de que estava a decorrer uma noite especial e decidi entrar.

O rapaz sorriu-me e assentiu com a cabeça. Era da minha altura. Moreno, ele tinha os cabelos castanhos-escuros, abaixo dos ombros. Tinha as famosas madeixas californianas de que eu já ouvira falar. As dele eram em tons férreos. Embora nunca tivesse visto um rapaz com este tipo de madeixas, gostei do resultado. Assentavam-lhe bem. Uma argola na orelha esquerda dava-lhe um certo ar rebelde. Os seus olhos eram castanhos. Eles transmitiam paz e tranquilidade. O seu sorriso era simpático e bem-disposto.

Estava vestido com uma camisa preta, aberta, mostrando uma t-shirt laranja. Ao peito ele trazia um pendente com uma clave de sol. Tal como eu, ele parecia gostar de vestir preto, pois as calças eram pretas e as sapatilhas dele também, embora os atacadores fossem num tom laranja-fluorescente.

- Então Caim, o que te traz até nós? - perguntou ele.

- Bem...- pigarreei. - Eu queria perguntar ao... - Como é que te chamas? - inquiri, levemente corado.

Ele riu-se divertido e fazendo-me uma pequena vénia, apresentou-se:

- Peço-te desculpas! Nem me apresentei! Eu sou o Mikel, muito prazer em conhecer-te!


Mikel


Cumprimentei-o e sorri.

- Mikel, eu gostaria de saber umas coisas, se puder ser...

Ele assentiu com a cabeça, sorrindo. Pegou no baralho de cartas e virando-se para mim, explicou:

- Toma, entrego-te o meu baralho. Vais pensar numa pergunta que queiras fazer, baralhas as cartas e quando achares que estás pronto, partes o baralho em três partes. Eu vou recolher as cartas e vemos juntos a resposta à tua pergunta, sim?

- Ok! - respondi.

Peguei no baralho dele. A princípio, limitei-me a ver as figuras que existiam em cada carta. Era um baralho muito bonito! Bastante diferente daqueles que eu conhecia. Com um suspiro, dei por mim a pensar no que perguntar. Havia algo que eu queria saber, mas... Não sei se tinha coragem de perguntar... E muito menos, coragem para ouvir a resposta.

- “Bom, vamos lá...” - pensei.

Baralhei as cartas.

Durante algum tempo, Mikel limitou-se a observar-me em silêncio, concentrado. Quando senti que já tinha baralhado bem, parei. Parti o baralho em 3 partes, tal como ele me dissera. Mikel recolheu as cartas em seguida. Sorrindo para mim, questionou:

- Qual é a tua pergunta? O que é que pretendes saber?

Sorri timidamente e baixei os olhos.

- Queria saber... Bem, eu queria saber se fiz bem em vir passar uns dias a Portugal... - respondi, num sussurro.

Mikel sorriu, levemente surpreso.

- “Não deve ser a pergunta típica que lhe fazem... Mas para mim, é uma pergunta bastante importante...” - pensei eu.

Ele pegou nas cartas e lançou-as na mesa. A sua expressão, ao longo da tiragem, foi-se alterando. O seu sorriso, sempre bonito, esmoreceu-se. O seu olhar escureceu. Os seus olhos ficaram brilhantes. Senti na sua expressão uma dor intensa. Senti que ele tinha visto algo que o havia perturbado bastante.

Baixei o olhar.

Aguardei.

Ao fim de alguns momentos, Mikel olhou para mim. Com um suspiro, ele replicou, cautelosamente:

- Caim, a tua viagem até Portugal foi bastante ponderada. Tu não querias vir. Querias continuar no teu cantinho, no escuro. Foram os teus familiares e amigos próximos que insistiram para que tu viesses. Acredita que… Depois do que aconteceu ao rapaz de cabelos pretos… Esta viagem… Foi sem dúvida… A melhor coisa que tu fizeste!

Olhei-o nos olhos. Seria possível?

Mikel prosseguiu, apontando para algumas das cartas:

- Este rapaz era muito importante para ti. Ele representava a tua Felicidade. Conhecia-te como ninguém mais te conhecia... Ele era, sem sombra de dúvidas, a luz do teu coração…
Desatei a chorar. Percebi, de imediato, que o Mikel tinha receio de me dizer tudo o que vira nas cartas, que estava a escolher as palavras a dedo para não me magoar, mas eu tinha a certeza que ele já percebera tudo! Em silêncio, pegou num pacote de lenços e entregou-me. Foi buscar uma chávena de chá, encheu-a e passou-me.

- Toma. É um chá de rosas que a Mariana, a dona do bar, costuma preparar para mim. Vai fazer-te bem. - explicou, com voz doce.  

Peguei na chávena.

Levei à boca e provei. 

O sabor era agradável.

Tirei um lenço e assoei-me.

Peguei na chávena. 

Bebi mais uns goles.

Ele olhava para mim.

Pousei a chávena.

Ia fazer-me bem desabafar.

- Como foi que tudo aconteceu? - perguntou-me Mikel, num sussurro.

Não aguentei mais.

Abracei-me a ele a chorar. Ele abraçou-se a mim com muito carinho, confortando-me. As lágrimas que eu mantivera cativas cá dentro, finalmente encontraram um porto de abrigo onde as pude libertar...

- Está tudo bem... Chora à vontade... - sussurrou Mikel.

Ele fez-me festinhas no cabelo e aconchegou-me contra o seu peito. Por momentos, questionei-me se ele era assim tão gentil com todas as pessoas! Eu sentia o seu calor e o seu carinho. Ali, recostado a ele, sentia-me bem e protegido! Deixei-me estar assim por algum tempo. Mikel chorava em silêncio. Eu sentia os seus soluços.

Olhei-o nos olhos.

Mikel afastou-se um pouco de mim, pegou num lenço e declarou:

- Eu peço-te desculpas...! Não costumo reagir assim.…!

Abracei-o novamente.

- Não faz mal. Abraça-me! Por favor...! - sussurrei.

Ele abraçou-me e suspirou:

- Há muito tempo que eu não encontrava uma pessoa como tu, sabes?




Por fim, ganhei coragem e expliquei:

- O que tu viste nas cartas está certo. O rapaz de cabelos pretos era um rapaz chamado Santiago. O Santiago era o meu namorado. Ele... - recomecei a chorar.

- Ele morreu num acidente, não foi? Num estúpido acidente.... Causado por um homem... - murmurou Mikel.

Suspirei.

- É verdade. O Santiago tinha-me levado ao Instituto onde eu estudo e trabalho. A nossa cidade tem muito trânsito, pelo que fomos para lá de mota. Depois de me deixar, o Santiago foi para o trabalho dele. Estava parado num semáforo, quando foi abalroado por um condutor. Esse condutor vinha distraído a falar ao telemóvel e quando se apercebeu que o semáforo estava vermelho, travou a fundo, mas foi tarde de mais...

Mikel permanecia em silêncio. Lágrimas rolavam pelo seu rosto.

Prossegui.

- O Santiago era um rapaz lindo. Magro, mais alto do que nós, cabelo preto, liso, “emo style”, estás a ver? Olhos azuis... Ele era muito giro... E tinha cá um sorriso... Um sorriso verdadeiramente encantador! Foi com esse sorriso que ele me apanhou!


santiago-meandros-da-vida
Santiago

- Pois, consigo imaginar... - respondeu Mikel, com olhar perdido.

- O Santiago não gostava de usar capacete. Adorava sentir o vento a roçar nos cabelos dele.  Quando o condutor abalroou o Santiago... Ele foi projectado vários metros. Sofreu vários traumatismos e entrou em coma. Os médicos disseram que se ele algum dia recuperasse, iria ficar com lesões permanentes e viveria dependente de outras pessoas, para o resto da vida. Acabou por morrer há 9 meses... - rematei.

Mikel serviu-me um pouco mais de chá. Ele não parara de chorar, embora me apercebesse que ele estava a fazer todos os possíveis para se controlar. Intrigado, perguntei:

- Tu és muito mais sensível do que eu podia imaginar, Mikel! Algum motivo para seres assim? - inquiri, fazendo-lhe um afago.

Ele fungou e tirando um lenço para se assoar e limpar o rosto, respondeu:

- Sabes Caim... A tua história é parecida com a minha. Conheci um rapaz chamado Ángel por um mero acaso. Um Acaso do Destino, durante um intercâmbio de estudantes. Nós começámos a falar, a conviver e depressa nos apercebemos de que quanto mais tempo passávamos juntos, mais tempo queríamos passar! Sentíamos muito a falta um do outro. O Ángel era um fofinho. Muito doce e terno. Mais baixinho que nós, ele dava-me pelos ombros. Tinha olhos azuis, pele clara e um ar muito feminino. Sabes? O Ángel era andrógeno! Aliás, a primeira vez que nos vimos e eu me dirigi a ele, pensei que ele era uma rapariga!

Mikel riu-se, divertido.

- Aqui entre nós… Felizmente, ele era um rapaz! E que rapaz! - exclamou, piscando-me o olho.

Ri-me docemente.





Mikel falava com ternura e os seus olhos estavam muito brilhantes. Senti que também ele precisava de desabafar.

Aguardei.


Ángel


- Eu e o Ángel tínhamos uma relação muito cúmplice. Namorávamos há já um ano e meio, quando ele me pediu em casamento! Estávamos prestes a fazer 4 meses de noivado quando o Ángel foi atropelado, ao atravessar uma passadeira! A condutora que o atropelou estava cheia de pressa e ultrapassou vários carros... Ao aperceber-se do que ia acontecer... - Mikel suspirou. - O impacto foi muito grande! O carro foi contra ele e atingiu-o em cheio! Ele rebolou para cima do carro, “voou” literalmente alguns metros e depois caiu, ainda meio consciente. Segundo testemunhas e os socorristas que o acudiram, o Ángel só murmurava: “Oka-chi... Oka-chi...

- “Oka-chi”? - perguntei, admirado.

Mikel explicou:

- Eu e o Ángel andamos a estudar japonês durante algum tempo. Ele passou a chamar-me Oka-chi1.. Ele era o meu Kit-chi2... - respondeu Mikel.

- Awwwww! Que fofinhos! - suspirei. - Mas... Espera lá! Então... Ele estava a chamar por ti! - exclamei, chocado!

Mikel assentiu com a cabeça.

- É verdade... O Kit-chi estava a chamar por mim! Quando me contactaram, eu fui logo para o hospital, mas ele sofreu uma hemorragia interna e teve uma paragem cardíaca. O meu Kit-chi já não chegou vivo ao hospital.

Fiquei a chorar em silêncio. Abracei-me ao Mikel, que chorava também. Perder alguém assim, era terrível... Eu compreendia bem a dor que ele estava a sentir.

Ficámos assim por algum tempo, em silêncio.

- Queres perguntar mais alguma coisa às cartas? - perguntou ele, minutos depois, entre soluços e fungadelas, enxaguando os olhos e fazendo um pequeno sorriso.

Dei por mim a olhar para ele e a pensar. O que haveria de perguntar?

- Está bem. Gostava de saber como vão correr os próximos dias cá em Portugal, antes de voltar para casa...

- Muito bem! Vamos ver isso, então!

Voltei a baralhar as cartas, parti em 3 partes. Mikel recolheu-as e começou a dispô-las na mesa.

- Hummm! Sim senhor! - sussurrou ele, mais para si mesmo do que para mim.

- Então? O que dizem as tuas cartas? - perguntei, curioso.

Com um sorriso misterioso, Mikel pigarreou e profetizou:


Uma viagem estás a fazer,
Para uma perda superar.
O Destino fez-te conhecer
Aquele que te vai ajudar!

Novos amigos vais fazer,
A tua aventura vai continuar!
Uma raposa vais conhecer,
Um rapaz transtornado, vai-te guiar.

Quando o tempo aquecer,
Num jardim à beira rio, a raposa irás reencontrar.
Algo especial vai então acontecer:
Ao entardecer, o encanto vai-se quebrar…
… E uma nova jornada assim vai começar!


Eu fiquei surpreendido!

- Wow! Tu és sempre assim?!? - perguntei, espantado.

Ele sorriu, corando um pouco.

- Não, nem por isso... - respondeu.

Corei também. Sorri para ele, feliz:

- Obrigado! A sério! Gostei! O passeio a Lisboa vai ser uma viagem interessante! - concluí.

Mikel sorriu e assentiu com a cabeça:

- Sem dúvida que sim! Vais gostar, embora vás sentir a falta de algo...

Suspirei, feliz.

Sentia-me bem. Muito bem mesmo. A conversa com o Mikel estava a ser muito boa.

- “Bem que eu gostava de prolongar este momento...” - pensava eu, quando a Mariana apareceu.

- Mikel, está quase na hora de fechar! Espero que tenha corrido tudo bem!

Ele sorriu e disse:

- Correu sim, muito bem mesmo! - exclamou, olhando para mim.

A Mariana virou costas e saiu dali a sorrir. Mikel não tardou a arrumar as suas coisas. Eu virei-me para ele e perguntei-lhe, de chofre:

- Ó Mikel… Tu gostas de cantar? Parece-me que tens jeito para isso! - comentei, piscando-lhe o olho.

Ele olhou para mim, intrigado. 

- Por acaso... Gosto sim! Alivia-me a alma e aquece-me o coração...

Sem perder tempo, sugeri:

- Sendo assim… Desafio-te a irmos ali, para o centro da praça! Vamos cantar uma canção... Podia ser uma canção em homenagem ao Santiago e ao Ángel. O que me dizes?

Mikel olhou para mim com uma expressão séria.

- Estás a falar a sério ou a brincar? Essa é uma ideia interessante! Soa-me bem! Vamos lá! Mas primeiro...

- Sim? - inquiri.

- Eu tenho de ir à casa de banho! Estou apertadinho! Não fui a noite toda...! - sussurrou ele, rindo-se.

- Eu também preciso! Posso ir contigo?

- Claro! Anda daí, Caim! - respondeu Mikel, com um sorriso.

Lá fomos os dois à casa de banho. Sentia-me cada vez melhor e mais confortável na companhia dele. Estava feliz como há muito não me sentia. E apercebi-me de que ele também. Com um sorriso cúmplice, fizemos o que íamos fazer.

- Possa, que alívio! - comentamos os dois ao mesmo tempo e quando fomos lavar as mãos, atiramos água um ao outro, na brincadeira. Abracei-me a ele e preparava-me para beijá-lo, quando um rapaz entrou na casa de banho.

- Ups!!! - exclamamos os dois, rindo e tossindo ao mesmo tempo, enquanto saíamos da casa de banho, corados que nem dois tomates.

Fomos buscar as nossas coisas e depois de nos despedirmos da Mariana e das restantes funcionárias, seguimos para a praça, que ficava a poucos metros do bar.

Chegados lá...

- Que canção é que vamos cantar? - perguntou Mikel.

- Que tal esta? Conheces?

Cantei-lhe um pouco da canção que tinha escolhido. 

- Uau! É linda! Conheço, sim! - Mikel, com um grande sorriso.

Peguei no estojo e tirei de lá o meu baixo. Virei-me para ele e declarei:

- Quando quiseres...

- Aos 3, tim? - sussurrou ele.

- 1,2,3!!! - gritamos os dois, a rir.



[Caim & Mikel]

O vento que brilha com sete cores,
Soprará, anunciando um novo dia.
Eu cantarei novamente esta canção:
Uma canção triste, que me faz sempre chorar...

Estes pássaros que voam para o céu oriental,
Eles estão a seguir um atalho, rumo ao Paraíso!

No Paraíso dos Sete Mares
As nossas vidas renascerão
Para que eu possa comunicar o meu amor, depois da noite tempestuosa!

Eu cantarei esta melodia
Que foi criada para mim
No dia em que tu partiste daqui
Para que tu não te esqueças de mim!

As nuvens desaparecem, lentamente,
Revelando aquele belo arco-íris!
As estrelas são como pérolas:
Começam a libertar uma luz forte!

Eu posso ouvir um assobio, vindo dos céus do sul!
É verdade!
Pude escutar alguém a chamar-me:
Uma aventura, ir ao encontro de um milagre!

Todos nós viajamos numa jornada, enquanto abraçamos os desejos dos nossos corações!
A fantasia de uma noite com estrelas cadentes,
Transbordando lágrimas, com uma oração,
Ilumina um futuro desconhecido a todos nós!

Entramos numa aventura
Cheia de milagres em que eu e tu
Descobrimos algo
Ao qual algumas pessoas chamam de Amor.

Sinto que é uma fantasia
Como as estrelas olham para nós!
Um futuro que ainda não existe
Mas eu sei que conseguirei alcançar!


Quando terminamos, uma multidão rodeava-nos.

Olhei para o Mikel, que estava a chorar, tal como eu.

Sorrimos um para o outro.

Toda a gente bateu palmas, muitas pessoas choravam também.

Abraçamo-nos e olhamos para o céu, enquanto sussurrávamos:

- “Ángel, Santiago, nunca vos esqueceremos... Obrigado por tudo!


shooting-star


Uma estrela cadente cruzou os céus.

Eu e o Mikel sorrimos um para o outro.

Cúmplices, beijamo-nos finalmente.

Ouvimos uma enorme ovação de todas as pessoas que ali estavam.

Elas eram as testemunhas do nosso renascimento.


Notas do Autor:

1 - Lobinho;
2 - Raposinho;

[Continua...]

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