Capítulo 8
O condutor da lancha teve presença de espírito para chamar a polícia de imediato e trazer os jovens para a lancha, colocando-lhes uma manta sobre as costas. O sol começava a descer sobre os montes e o tempo arrefecia drasticamente. Os três rapazes foram levados para a esquadra, a fim de prestarem declarações. O pai de Matoskah e Takoda foi ter à esquadra pouco depois.
- Deixem-me passar, eu sou advogado! - resmungou Chayton, aproximando-se dos filhos e abraçando-os. Takoda estava muito assustado.
- Que se passou, Matoskah? - perguntou.
- Pai, nós fomos passear no lago de River Falls com o Jules! O Takoda ficou com dores de barriga e o senhor da lancha parou numa das margens! Quando vínhamos de regresso ao barco, o Takoda descobriu o corpo daquele rapaz, o Kris Sanders, a boiar na margem do lago!
Horas depois, depois de recolherem os testemunhos de Matoskah, Jules, Takoda e do condutor, os polícias permitiram que todos regressassem a casa, mas avisaram que poderiam ser notificados a prestar novas declarações. Como o pai de Jules tinha partido numa viagem de negócios, Chayton convidou Jules a passar a noite na casa deles, convite que este aceitou de imediato. Todos estavam em choque.
Chegados a casa, Chayton preparou uma refeição leve. Nenhum dos jovens estava com vontade de comer, mas Chayton insistiu e eles acabaram por ceder.
- Vai fazer-vos bem, meninos. Depois de comerem, vão tomar banho e vão para a cama. Vocês precisam de uma boa noite de sono. - declarou ele, com ar paternalista.
Matoskah foi tomar banho com Takoda, enquanto Jules tomava um chá com Chayton.
- Senhor Chayton, muito obrigado por me acolher! - exclamou Jules. - Não me apetecia nada ficar sozinho esta noite!
- Não tens de quê, Jules! Sabes meu rapaz, já faz algum tempo que queria conversar contigo…
Jules olhou para Chayton, preocupado. Teria feito algo de errado? Chayton riu-se e colocou uma mão sobre os ombros de Jules.
Jules endureceu o seu olhar. Suspirando triste, falou num tom de voz mais sério.
- Olhe, eu posso garantir-lhe que sou amigo dos seus filhos e não vou virar-lhes as costas! Eu sei que não sou perfeito, mas…
Chayton sorriu satisfeito, colocando um dedo à frente da boca de Jules.
- Não precisas de dizer mais nada, meu rapaz! Vejo nos teus olhos e na tua voz a determinação que esperava! Peço-te desculpas pelo que te disse, mas o Matoskah já passou por muito. Não precisa de sofrer mais…
- Que lhe aconteceu? - questionou Jules.
Matoskah e Takoda surgiram de repente, mais animados. Chayton rematou, com um sorriso:
- Está na hora de ires tomar banho, Jules! O Matoskah vai preparar um lugar para dormires no quarto dele! E quanto a ti, querido Takoda, está na hora de ires dormir!
O pequeno Takoda aproximou-se do pai e abraçou-o, dando-lhe um beijo. Fez o mesmo a Matoskah. Olhou para Jules e sorriu-lhe. Takoda virou costas e foi a correr para o seu quarto. Matoskah conduziu Jules até ao andar superior. Deu-lhe uma toalha para o banho e mostrou onde era o seu quarto.
Pouco depois, Jules deixou a água cair sobre o seu corpo cansado durante algum tempo. As palavras de Chayton martelavam-lhe na cabeça. Aquilo tinha doído mais do que encontrar o corpo do pobre Kris Sanders naquela tarde. Lembrou-se das palavras que Kris tinha escrito na fotografia que os polícias lhe tinham mostrado dias antes e começou a chorar. Ele sentia exactamente a mesma coisa naquele momento.
Jules chora em silêncio, enquanto se recorda da mensagem de Kris Sanders:
“Deixem a chuva cair e lavar as minhas lágrimas, deixem as minhas lágrimas encherem a minha alma e afogar os meus medos.”
Minutos depois, saiu do banho e secou-se. Foi nessa altura que se lembrou que não tinha roupas limpas. Teria Matoskah alguma coisa para ele vestir? Dirigiu-se ao quarto de Matoskah e deparou-se com este deitado na cama, totalmente nu, meio adormecido.
- E eu a ele, Jules. Ele é o meu lindo misún6, o meu aŋpétu wí7… - respondeu Matoskah com um sorriso ternurento.
- Awwwww! Vocês são tão fofos! Eu derreto-me todo quando vos vejo juntos… - suspirou Jules, sem pensar.
Matoskah virou-se para Jules, que baixou os olhos envergonhado. Ficou em silêncio a olhar para o amigo, até que comentou:
- Sabes, Jules? Tu dizes coisas esquisitas, às vezes! Tu não tens irmãos?
- Eu? Eu tenho! Sim, tenho! Tenho uma irmã mais velha. Ela chama-se Bianca.
- Olha Jules, eu já repararei que tu falas pouco da tua família. Vocês dão-se todos bem?
Jules virou-se para o outro lado. Não queria que Matoskah visse os seus olhos a ficarem brilhantes.
- A minha mãe é uma cantora. Passa o ano a cantar em bares e a dar concertos por todo o país. Já a minha irmã é professora. Como ela ainda tem poucos anos de serviço, nunca sabe onde vai ser colocada no ano seguinte. Este ano foi seleccionada para trabalhar numa escola em San Diego, na Califórnia.
- Na Califórnia? Bolas! Isso fica a vários dias de distância…
Jules riu-se com o comentário.
- Dias? Como assim, Matoskah? Ela consegue estar cá em algumas horas! Basta-lhe apanhar um avião!
Matoskah mostrou-se surpreendido.
- Ela monta o pássaro-de-ferro?
- Tu nunca andaste de avião, Matoskah? - desta vez, foi Jules quem se mostrou bastante surpreso.
- Não, nunca andei neles! Esses pássaros são estranhos! Não gosto de os ver a voar nos céus! Fazem muito barulho! Assustam os animais!
- Como é que vocês se deslocam então, Matoskah?
- Nós andamos nos cavalos-de-ferro, nos cavalos-de-rodas e claro, montamos osšúŋkawakȟáŋ8! Estes são os meus favoritos. Todos os indígenas adoram montar osšúŋkawakȟáŋ8. Um dia vens comigo à minha terra natal. Montaremos nos šúŋkawakȟáŋ8e cavalgaremos nus! A sensação de liberdade, com o vento a acariciar os nossos corpos, é indescritível! - relatou Matoskah, com olhar sonhador.
Jules virou-se novamente. Matoskah sorria feliz. Jules preparava-se para tocar no peito de Matoskah quando bateram à porta. Este levantou-se, nem se preocupando em vestir algo para proteger a sua intimidade. Jules não pôde deixar de ficar admirado com o que viu! Rindo-se divertido da cara que Jules estava a fazer, Matoskah aproximou-se da porta e abriu só uma fresta, não fosse estar a mãe à porta. No entanto, quem estava à porta era Takoda, que estava a chorar.
- Então, misún6? O que aconteceu? - perguntou Matoskah, abrindo a porta de imediato.
- Matoskah! - exclamou Takoda, que se aproximou do irmão e o abraçou. - Eu tive um pesadelo com aquele menino de hoje à tarde! Ele apareceu e disse coisas… Coisas horríveis! E eu fiquei com tanto medo…! Eu…
Takoda começou a soluçar, ao aperceber-se da presença de Jules. Matoskah deu-lhe um beijo e sussurrou, com carinho:
- Hoje queres dormir com o mano? Eu vou tratar daquilo, para os papás não saberem de nada! Deita-te ao lado do Jules, está bem? Eu volto num instante, está bem? Tomas conta dele, Jules?
Jules e Takoda assentiram com a cabeça e com um pequeno sorriso, Takoda foi para a cama de Matoskah, deitando-se ao lado de Jules, que lhe sorriu timidamente. Não estava nada à espera daquele imprevisto. Como que adivinhando-lhe os pensamentos, Takoda disse:
- Desculpa, Jules… Eu não queria estragar a vossa noite…
Jules fez um carinho no rosto de Takoda. O miúdo era mesmo adorável! Dando-lhe um beijinho na testa, disse-lhe, com voz meiga:
- Não estragaste nada, Takoda! Disseste que tiveste um pesadelo, foi?
- Foi! Sonhei com aquele menino de hoje de tarde! Ele… - e recomeçou a chorar.
Jules abraçou-o. Sentiu-se estranho, já que ambos estavam nus, na cama de Matoskah. E se os pais deles entrassem no quarto naquele momento? Colocou o edredão sobre os dois, até porque começava a sentir frio. Tentando acalmar o pequeno, Jules segredou-lhe:
- Sabes? Eu também tenho pesadelos às vezes! E fico com muito medo!
- A sério? - perguntou Takoda, surpreendido. - Mas… Mas… Tu pareces tão forte!
Jules riu-se com aquilo. Takoda riu-se também. Aos poucos, começava a acalmar-se. Não tardou muito para que Matoskah regressasse ao quarto.
- Já arrumei tudo e pus a roupa para lavar… Os pais não se aperceberam de nada! Vocês estão bem? Espero que o Takoda não te tenha dado trabalho! - comentou Matoskah, entrando na cama e acomodando-se junto do irmão e de Jules.
- Trabalho nenhum! - respondeu Jules, sorrindo.
- Hummmm, a cama está quentinha! Ainda bem! Já começava a ficar com frio… A nossa casa consegue ser bem fria às vezes… - comentou Matoskah.
- Eu aqueço-te! - exclamou Takoda, abraçando-se ao irmão.
Matoskah suspirou feliz, ao ver Takoda acomodar-se no seu peito. Este não tardou a adormecer. Jules observava a cena, levemente enciumado. Ele é que devia estar ali, abraçado a Matoskah! Preparava-se para se virar para o lado e dormir, quando uma mão lhe tocou no ombro.
- Hey… - sussurrou uma voz ensonada.
- Ele já está a dormir? Que aconteceu para tu saíres do quarto? - perguntou Jules.
Matoskah olhou para o irmão, certificando-se que este estava a dormir. Takoda dormia tranquilo. Ele adorava dormir na cama do irmão mais velho.
- O Takoda fez xixi na cama. Ele já não fazia isso há bastante tempo, mas recomeçou pouco depois de virmos para Grace Falls. Ele fica muito envergonhado quando isso acontece. Tem medo que o nosso pai lhe ralhe como quando ele era pequeno…
- É compreensível…
- O meu irmão tem sonhos muito especiais. Aliás, o Takoda é um menino bem especial. Ele consegue comunicar com facilidade com os nagi tanka1e estes com ele. Sabes? É muito provável que um dia o Takoda se torne um wicasa wacan9.
Jules olhava para Matoskah e Takoda, surpreendido! Ele e o irmão acreditavam em coisas tão extraordinárias! Os pensamentos de Jules rapidamente se perderam nos murmúrios que Matoskah lhe foi contando sobre a sua tribo. Não tardou muito para que os dois adormecessem, com um sorriso nos lábios.
Notas do Autor:
6 - Irmão mais novo;
7 - Sol;
8 - Cavalo;
9 - Curandeiro; Matoskah aqui quer dizer que Takoda se tornará um Shaman e será o braço direito do líder da tribo que Matoskah um dia criará.
[Continua...]
A acompanhar a gostar muito :)
ResponderEliminarObrigado Francisco! ;D
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