30 abril 2021

Escrito nas Entrelinhas: Parte 2 ~ Capítulo 20

 


Capítulo 20


*7 de Agosto de 2017*


Matoskah acordou naquele dia já quase sem visão. Totalmente descontrolado, gemeu, esperneou e fez das tripas coração para que Wickmunke tivesse compaixão por ele e o colocasse perante a derradeira prova.

Este abraçou-o, deu-lhe um beijo na testa com carinho e falou-lhe num tom de voz que Matoskah escutou no coração:

- Tu tens sido um bravo e corajoso guerreiro. Os meus antepassados e os teus estão tão orgulhosos de ti, meu querido Matoskah! Vou colocar-te perante a tua última prova. Se a venceres, recuperarás todos os teus sentidos e estarás pronto para criar uma nova tribo! Se perderes, perderás bem mais do que os teus sentidos…. Perderás a tua vida também…

- Como assim? O que me vai acontecer? - gesticulou o jovem.

Wickmunke aproximou-se de Matoskah e deu-lhe a beber um líquido, enquanto explicava naquele tom de voz que se fazia ouvir no coração:

- Essa bebida que acabaste de beber é a única cura para o mal que te consome. Trata-se de um veneno de enorme poder, que só se arranja aqui, no Grand Canyon e que o teu corpo terá de vencer! Domina-o e o teu corpo voltará a ficar bom, imune a todo o tipo de venenos que existem neste belo planeta!


·

Após escutar estas palavras, Matoskah tossiu, sentindo as entranhas dele a pegarem fogo! Ele contorcia-se, atrapalhado! Sentia o seu peito arder, os pulmões a asfixiar, enquanto já não via nada, não ouvia e não conseguia gritar!

Uma série de imagens percorreram-lhe a mente. Lembrou-se de Tatanka, o seu falecido irmão. Recordou-se de como eles eram felizes juntos, de como o irmão lhe tinha ensinado a tocar instrumentos e a falar por gestos. 

Recordou-se das brincadeiras íntimas que tinham e que eram tão comuns entre os jovens de tenra idade na tribo deles. Lembrou-se do dia em que se deparou com Tatanka já inerte, após este perder a luta contra um terrível urso, que mais tarde se tornaria o seu espírito animal. O Matoskah-Criança e o Matoskah-Adulto choravam e gritavam, de dor e desespero. As vozes de Wickmunke e de Tatanka falaram a uma só voz:

- “Mitakuye Oyasin, Matoskah!

Ao escutar aquilo, uma sensação de alívio invadiu o corpo de Matoskah. De repente, Matoskah estava muito bem vestido, com um fato de cerimónia, na companhia de Wickmunke. Estavam no que parecia ser um salão de festas, rodeados de pessoas que nenhum deles conhecia e que não pareciam aperceber-se da presença deles.

- Onde estamos? O que estamos a fazer aqui? Eu não estava a fazer uma prova? - questionou Matoskah.

- Estamos a celebrar a tua vitória! - sussurrou Wickmunke, abraçando-se a Matoskah.

De repente, o cenário mudou novamente.

Matoskah estava no velho armazém onde tinha criado um ninho de amor com Jules. Aquela dor agonizante voltara ao seu peito. A dor daquele fatídico dia…

- “Ó Jules! O que estás a fazer?” - gritou Matoskah, desesperado, aproximando-se de Jules.

- “Não te aproximes mais, Matoskah!“ - vociferou Jules. - “Eu não quero conspurcar-te com o meu pecado! Tu não mereces isso!

Tudo começou a arder instantes depois, entre os berros e gritos de Matoskah. Jules declarava, com ar louco:

- “A morte do eu… Esta sim…. É a liberdade absoluta! Obrigado, meu amor! Obrigado por todos os belos momentos que passamos juntos!





- Jules! Nããããããooooo!

Jules tinha-se atirado do prédio! Matoskah observava tudo, totalmente desesperado!

De repente, o cenário mudava de novo.

Matoskah via-se a si mesmo, deitado numa cama do hospital de Grace Falls. Um médico observava e mexia no seu corpo nu e excitava-se com isso, estimulando o seu próprio corpo. 

Não tardou para ver o mesmo médico a fazer o mesmo ao seu irmão Takoda! Um misto de raiva e indignação rugiram dentro de Matoskah. Uma raiva crescente vibrava em cada célula dele, a ponto de explodir!

O cenário mudou novamente!

Jules aparecia no seu próprio funeral, vestido com um lindo fato de cerimónia, muito semelhante ao que Matoskah tinha usado no baile onde dançara com Wickmunke. Tatanka aparecia também, a dançar com várias raparigas e rapazes, enquanto Jules dançava com um rapaz que Matoskah não conhecia. Indignado, Matoskah aproximou-se de Jules e preparava-se para falar, quando Tatanka o interpelou:

- Estás prestes a superar o teste! Acorda, Matoskah! Vive a tua vida e sê o mais feliz que puderes ser! Por favor, torna o nosso sonho uma realidade!


·

Uma onda de amor e gratidão explodiu no corpo de Matoskah. Este sentiu o seu corpo a flutuar, mais leve que o ar! De repente, um clarão de luz de sete cores iluminou-o e desceu sobre ele, entrando pela cabeça e descendo sobre todo o seu corpo, preenchendo-o, até aos pés. Assim que todo o seu corpo foi iluminado pela chama arco-íris, Matoskah suspirou profundamente e abriu os olhos, lentamente.

A primeira coisa que ele se apercebeu é que tudo à sua volta estava mais nítido e vívido do que alguma vez se recordava! Emocionado, ele deu um berro de alegria e para sua surpresa, apercebeu-se que não só tinha recuperado a sua voz, como também a sua audição! 

De imediato, Matoskah começou a gritar e a urrar feliz! Tinha superado as provas que os Grandes Espíritos tinham criado para ele!




·


Wickmunke apareceu de repente, com ar de profunda reverência:

- Meu querido e amado Matoskah! Quanta honra me deste hoje, ao ver descer sobre ti a bênção divina! Não és apenas o mais jovem e recente líder de uma nova tribo, como também foste totalmente agraciado pelos Grandes Espíritos!

- Nunca o teria conseguido sem a tua preciosa ajuda, querido Wickmunke! Obrigado! - rematou Matoskah, abraçando-o com carinho.

Os dois deixaram-se estar assim durante algum tempo. Matoskah sentia que tinha renascido. O seu coração estava leve, como sempre estivera, excepto durante a fase em que Jules tinha morrido. Matoskah estava a partilhar isso mesmo com Wickmunke, quando uma visão de Jules lhe entrou pelos olhos dentro! Jules aparecia envolto numa neblina esquisita e parecia assustado:



·


- “Matoskah! A minha irmã Bianca corre perigo! Por favor, ajuda-a! Por favor, meu amigo! Ajuda a Bianca!

A visão desvaneceu-se tão rápido quando irrompera. Matoskah comentou de imediato aquela visão com Wickmunke que, preocupado, tratou logo de enviar um alerta para a tribo.

- Está descansado, nobre Jules! A ajuda já vai a caminho! - gritou ele para os céus, enquanto uma águia voava bem alto nos céus, em direcção a nordeste.   


*Entretanto, em Grace Falls…*


Bianca prosseguia a leitura do diário, de forma ávida. Ela sentia que a qualquer momento encontraria a pista que lhe faltava para desvendar o mistério. Para consternação de Bianca, Jules limitara-se a desenhar estados de espírito que ia sentindo e algumas das aventuras que tivera graças ao aplicativo Finder nas muitas páginas seguintes, o que lhe causou alguma estranheza.

De igual forma, a escrita de Jules tornara-se mais vaga e errática. Bianca apercebeu-se que o irmão já devia estar sobre os efeitos da intensa medicação que os médicos lhe haviam prescrito e que tal lhe estaria a afectar a capacidade de se concentrar a escrever como o tinha feito até então. Ainda assim, Bianca já tinha decidido ler o diário até ao fim. Estava com esperanças de encontrar ali as respostas que procurava.


*Diário de Jules, Página 345*


“Querido diário,

 Já perdi a conta ao número de vezes que fechei e reabri o Finder. Aquilo é, como eu imaginava, um verdadeiro talho, uma verdadeira montra de loja. Andam todos sempre à procura de “carne fresca”. Acho que nunca vi homens tão bonitos e tão vazios ao mesmo tempo, concentrados num só lugar e em tão grande quantidade.

De igual forma, eu nunca fui tão elogiado e “apaparicado” como sou ali.   

Apesar de me sentir usado por causa disso, a verdade é que no fundo, bem lá no fundo, a ideia de ser objecto de desejo de tantos homens, de diferentes idades, estratos sociais e níveis de cultura, deixa-me feliz e orgulhoso.

Afinal, hoje em dia, praticamente ninguém lá no liceu me dirige a palavra.

Lá no liceu dizem que eu e o Matoskah andamos sempre juntos. Lá está - dizem ou pensam - porque essa é que é a verdade - e foi graças a isso que eles deixaram simplesmente de me falar. Mas na verdade, eu e o Matoskah a maior parte do tempo só estamos juntos nas aulas e nos intervalos do liceu. No resto do tempo, o Matoskah está ocupado com outras coisas e ainda bem, porque eu também preciso do meu espaço.

Passei a ter como companhia as sessões com a Mariza, o Joshua e o Father Simon. Na verdade, existem momentos em que me sinto mais feliz com eles do que quando estou com o Matoskah.

Ele agora está mais calmo e tranquilo e não seria justo dizer que as coisas entre nós não melhoraram. Houve uma evolução e realmente… Nós estamos bem melhores hoje, do que estivemos até agora. Ele tem estado muito ocupado com coisas da tribo dele. Por vezes, até tem de faltar à escola e tudo. No entanto, ele trata-me com muita gentileza e carinho e os amigos dele também. Estou a gostar bastante deste lado mais adulto e responsável que ele me tem dado a conhecer.

Eu é que continuo o idiota, medroso e parvo de sempre. :///

Já faz algum tempo que abri o meu coração à Mariza, depois ao Joshua e por fim ao Father Simon. Apercebi-me que carregava um fardo demasiado pesado às costas. Não tive coragem para dizer por quem estava - e estou - apaixonado. Isso é algo que nem eu estou certo de poder afirmar com clareza.

Afinal, só há bem pouco tempo é que compreendi o que sentia verdadeiramente. O que mais me magoa no relacionamento com o Matoskah é que ele tem tentado fazer com que as coisas dêem certo. Eu sei que ele vê a relação como algo mais simbólico do que eu. Eu é que tenho sido o mau da fita, porque finalmente me apercebi de uma coisa muito importante.

Eu tentei encaixar os meus sentimentos, tentei transferir os meus sentimentos que nutro pelo Daniel para o Matoskah, mas tal não foi possível. Luto há vários meses para me apaixonar verdadeiramente pelo Matoskah, mas acho que tudo não passou de uma doce ilusão da minha cabeça. 

Gosto dele, sim, mas num misto de sentimentos. Vejo nele um amigo próximo, um companheiro de viagem, um irmão, um amante, sei lá… Se o Daniel surgisse agora à minha frente e me dessem a escolher… Eu escolheria o Daniel, sem sombra de dúvidas.”   


Bianca, surpreendida com aquela confissão de Jules, fechou o diário com força. Ao fazê-lo, uma fotografia saltou do diário para o chão. Intrigada, Bianca pegou na fotografia. Era um rapaz adolescente, de cabelos ruivos. Na parte detrás da fotografia, estava escrito:



Para o Jules, 
Envio-te esta fotografia mais atrevida como recordação por me teres dado a oportunidade de nos conhecermos!
Beijos,
Com muitas saudades tuas,
Shade


Intrigada com a fotografia, Bianca procurou o local do diário de onde esta se teria desprendido. Não tardou a encontrar o lugar:
 

*Diário de Jules, Página 370*


“Querido diário,

A vida é bela quando se ama! Pelo menos é o que diz a Maurice! E acho que ela tem toda a razão!

Pois bem, já faz algum tempo que eu não escrevo por aqui! Aposto que até tu tens tido saudades minhas, não é?

Deixa lá, que é por um bom motivo!

As minhas preces foram finalmente ouvidas! Aleluia! Deus existe! \^o^/

Tudo começou após o meu 6º ou 7º retorno ao Finder.

Yah, eu estou sempre a dizer que vou largar aquilo e não sei que mais, mas pronto! A verdade é que nem toda a gente quer apenas sexo. Na verdade, já conheci alguns rapazes pelo Finder que neste momento considero amigos.

De vez em quando lá temos alguma conversa mais escaldante, mas temos consciência que é para dar um pouco de sal às nossas vidas. Todos temos a consciência - e ainda bem - de que procuramos algo diferente, mas que podemos dar-nos bem e sermos amigos.

Bom, tudo isso deixou-me feliz!

No entanto, o que realmente foi extraordinário, foi a noite em que um rapaz me enviou uma mensagem. Uma mensagem muito curta, onde dizia apenas:

“Olá Jules, boa noite! Gostei da simplicidade do teu perfil. Tal como tu, estou por aqui para conhecer e fazer novos amigos, que quem sabe, com o tempo, podem tornar-se algo mais. Abraços.”

Eu fiquei intrigado e fui “cuscar” o perfil dele. Achei piada a várias coisas: ele é do mesmo signo que eu, temos a mesma idade, procura as mesmas coisas que eu e tem um ponto que eu adoro num homem: um ar misterioso.

Mandei-lhe mensagem a agradecer e ele passados alguns minutos respondeu. 

Começamos a conversar e não sei explicar-te como, nasceu entre nós uma empatia imediata. Eu parecia que conseguia ler-lhe os pensamentos e ele a mim! Trocamos fotografias e qual o meu espanto quando vi o rapaz bonito que tinha a falar comigo!

Fiquei intrigado com o que levaria um rapaz bonito como ele a falar comigo. Ele explicou-me que me tinha considerado bonito, inteligente e sensível e que tinha sentido vontade de me conhecer. E eu concordei, dizendo-lhe que isso era o que eu estava a sentir com ele.

As horas passaram a correr. Depressa trocamos contactos e passamos a teclar pelos telemóveis. Eu queria ainda escutar a voz dele antes de ir dormir, mas ele disse que isso ficaria para uma próxima vez, a fim de mantermos algum suspense e mistério no ar. Ainda conversamos sobre imensas coisas e quando demos por ela, o dia já tinha raiado!

Nessa manhã eu não fui às aulas. Estava demasiado entusiasmado por ter conhecido o Shade. Até nisso ele é misterioso, não achas? Adorei o nome. Shade. Assenta-lhe que nem uma luva…”



*Diário do Jules, Página 379*


“Já converso com o Shade há algum tempo e digo-te: nunca me senti tão animado e feliz em conversar com um rapaz!

Na verdade…

Eu fiz asneira outra vez. ;P

Eu atrevi-me e hoje convidei-o para vir cá a casa…

Este rapaz… Eu não te sei explicar como é que tudo se passou entre nós. Eu sei que não consegui esquecer o Daniel. Sei que ainda mantenho algo com o Matoskah. No entanto, com o Shade, tudo parece ficar mais fácil. Até nem me tenho cortado, vê lá tu! O Shade mostrou-me alguns cortes que já fez, pois ele também se corta.

Infelizmente, eu sou um cobarde. Ainda não contei ao Shade que tenho o Matoskah, nem que ainda gosto de um rapaz que morreu faz já algum tempo. :/

Na verdade, infelizmente, a vida dele é bem mais difícil que a minha. O Shade foi adoptado em bebé. Disse-me que a mãe verdadeira dele o abandonou à nascença! Mas que grande cabra! Como é que alguém tem coragem para abandonar um rapaz como o Shade?

Ele depois viveu numa família disfuncional. Os tios abusaram dele de diversas maneiras, incluindo sexualmente, ainda ele era pequeno. Quando a mãe adoptiva morreu, o Shade tinha 10 anos. Ele abandonou o lar onde vivia e passou a viver nas ruas, lá em Fargo, uma cidade na Dakota do Norte.

Fiquei muito triste ao saber da vida difícil que ele já teve, mas ao mesmo tempo percebi que estava perante um lutador e um sobrevivente. Apesar de ele ainda viver nas ruas, o Shade parece-me ser um rapaz sincero e honesto, que apenas quer o que todos ou a maior parte de nós quer - ser amado e claro, arranjar um pouco de estabilidade emocional e financeira na vida.

O Shade disse-me que raramente fala da sua vida pessoal, porque tem medo de que as pessoas o desconsiderem por ser um rapaz que vive nas ruas. No entanto, ele disse-me que comigo sente que pode ser um livro aberto. Que pode confiar em mim. Eu gostei que ele confiasse em mim e decidi abrir-me com ele. Contei-lhe das minhas dificuldades em ser gay, ao que ele me contou que se eu quisesse, eu e ele poderíamos experimentar algo íntimo que talvez eu gostasse, quando nos conhecêssemos.

Ele sabia que estava a lançar o isco certo. Deixou-me com a pulga atrás da orelha.

Eu sabia que era um risco, que poderia ser muito bem uma armadilha e o rapaz que conversava comigo na verdade ser outra pessoa ou estar com más intenções. No entanto, eu senti dentro de mim que ele estava a ser sincero. 

E eu, na verdade, já suspirava por ele.

Quando me masturbava, imaginava-me a ter algo com o Shade. Ele fazia-me sentir confortável e mesmo quando falávamos de assuntos sobre a nossa intimidade - não que fosse um tema recorrente - ele tinha sempre uma resposta que me fazia sorrir e a deixar-me a sentir bem. Com ele, apercebi-me de que os meus sentimentos de culpa não surgiam com tanta frequência, talvez porque ainda não nos tínhamos conhecido.  

Combinamos as coisas para o Shade vir cá a casa hoje.

Dispensei a Maurice e fui buscá-lo ao comboio que chega à hora de almoço. O Shade foi o último passageiro a sair do comboio, com ar desconfiado. Olhou para todo o lado e quando me viu, o seu rosto espelhou uma surpresa, tal como eu: estávamos vestidos de forma muito semelhante!

Rimo-nos com a coincidência e aproximamo-nos um do outro, trocando um forte e terno abraço. Estivemos abraçados durante algum tempo, como se fôssemos velhos conhecidos. Eu senti que o Tempo tinha parado naquele momento. Que o Mundo era só eu e o Shade. O abraço dele era quente e os olhos deles, brilhantes como duas safiras, estavam emocionados.”

- Ainda não me acredito que estamos mesmo a conhecer-nos. Muito obrigado, Jules! - comentou Shade, com uma voz profunda.   

- Ora essa, tu já devias saber que eu queria muito conhecer-te e estar contigo! - respondi.

- Sabes Jules? Eu estou habituado a não acreditar em nada que me contam. É difícil imaginar algo de bom a acontecer na minha vida…

Eu dei outro abraço ao Shade e convidei-o a montar a minha mota. Partimos juntos, com ele a colocar os seus braços ao meu redor, enquanto sorríamos um para o outro. Levei-o a conhecer alguns locais da cidade e arredores, de mota.

Como imaginava que ele estaria com fome, não tardamos a vir para casa, onde convidei o Shade a tomar um bom banho, a vestir umas roupas que comprei para ele enquanto eu lhe preparava uma boa e reconfortante refeição.

O Shade chorou, emocionado, ao ver tudo o que eu tinha preparado para ele. Acho que até aquele momento, ele estava à espera de conhecer um menino rico, que queria usá-lo para se satisfazer ou satisfazer algum capricho de menino rico. Quando percebeu que eu estava a ser genuíno, ele abraçou-me e convidou-me para tomar banho com ele.

- Não te quero perder de vista, Jules. Além disso, assim ficas mais seguro. Saberás que não venho aqui para te roubar nada…

- O bem mais preciso já me roubaste, seu maroto! - respondi eu. - Roubaste-me o coração com essa tua maneira de ser tão bonita…

O Shade ficou sem palavras. À medida que nos íamos despindo, íamos comparando os nossos corpos. Ele é mesmo lindo! Tem um corpo espectacular, muito semelhante ao meu! Até os pêlos deles são ruivos, como os meus! Contemplamos o corpo do outro durante algum tempo. 

A dada altura, o Shade disse que gostava de me mostrar o que me tinha falado.

Eu aceitei.

Não sei, com ele, as coisas fluíam com uma naturalidade extraordinária.

Já no banho, ele começou a tocar no meu corpo e a beijar-me, sussurrando palavras doces entre beijos e lambidelas. Explicou-me que queria fazer gouinage comigo.

Eu disse-lhe que desconhecia o que era gouinage. Ele riu-se, divertido e com simplicidade, explicou:

- O gouinage é um termo relativamente recente, mas que certamente muito boa gente usa e pratica, embora não conheça o termo. Trata-se de uma palavra francesa que significa “lesbianismo”. No entanto, o gouinage é, na verdade, uma forma de fazer sexo sem penetração. Estimulam-se os corpos de várias formas e sentidos, com o objectivo de se proporcionar o maior prazer possível ao nosso parceiro, sem ter de envolver a penetração.

- Mas isso não conta como o sexo preliminar, Shade? Não é isso que as pessoas fazem antes da penetração?

O Shade sorriu e continuou:

- Nesta prática, mais homoerótica, estimulam-se todos os sentidos, com vista a obtermos prazer sem necessitarmos de penetrar ou sermos penetrados. Como já percebi que tu não te sentes confortável com a penetração e eu também não, pelos motivos que te falei, pensei que podia ser algo interessante e bonito de desenvolvermos entre nós… Mas se não quiseres fazer nada, não tem problema. Ser teu amigo, por agora, deixa-me imensamente feliz. Mas confesso que gostava de me tornar algo mais do que um amigo para ti, Jules...

Ó pá, quando o Shade me disse aquilo, com aquele olhar, com aquele sorriso misterioso, eu senti que ia rebentar! Beijei-o com paixão! Amei-o naquele momento como não me recordo de ter amado alguém!

Pensei no que tivera com o Daniel. Pensei no que tinha com o Matoskah. Nenhum deles me conhecia tão bem como o Shade já me conhecia. As mãos dele exploravam o meu corpo, de uma forma tão subtil!

Cedo entendi o que ele queria dizer com outras formas de prazer. A maneira como fizemos amor hoje demonstrou isso mesmo. Senti um prazer enorme em estar ali, envolvido com ele, primeiro no banho, depois na cama, depois na cozinha, enquanto comíamos, depois de novo no banho, para nos lavarmos…

Até que por fim, ambos desejamos o mesmo - voltamos para aqui, para o meu quarto, onde fizemos amor e fomos até ao fim.

Foi uma experiência maravilhosa.

Eu quase não senti dor nenhuma e o Shade garantiu-me que também não sentiu nada, para além do prazer! Fiquei muito honrado por saber que ele a dada altura quis que eu o penetrasse e ele ficou feliz por saber que eu queria que ele me penetrasse a mim.

Felizmente, eu tinha uma caixa de preservativos, porque imaginava que algo pudesse acontecer hoje. Ele riu-se quando lhe contei isso, quando ele já se estava a vestir para se ir embora. Entre beijos e carinhos, disse-me que já havia noites, desde a noite em que tínhamos trocado a primeira mensagem, que desejava que esta tarde acontecesse. Estava eu deitado na cama ainda despido e ele a acabar de se vestir, quando ele me abraçou, beijou e me sussurrou:

-  Tudo foi ainda melhor do que eu imaginava… Muito obrigado, meu querido Jules!

Shade pegou no preservativo que eu tinha usado nele e dando-lhe um nó, disse-me, com voz ternurenta:

- Vou guardar isto, de recordação.

- Idiota! És mesmo parvo! - respondi eu, rindo-me do ar apaixonado que Shade me apresentava.               
- Dizem que é isto que o amor causa nas mentes dos mais nobres e puros de coração. Estou feliz por te ter conhecido, Jules! Obrigado!

Eu fiquei nas nuvens com o Shade! Como é que eu podia resistir a um rapaz tão fofo como ele?


Bianca estava estupefacta com as revelações do irmão! Mais ainda ao ver que o tal rapaz era bom rapaz e que parecia gostar verdadeiramente de Jules! Curiosa, prosseguiu com a leitura, decidida a ir até ao fim do diário.



*Diário de Jules, Página 400*


Tenho evitado falar com o Shade. 

Descobri algo e não sei o que fazer. 

Ele tem mandado imensas mensagens e recados, preocupado! 

O Shade quer assumir algo comigo.

Finalmente, ganhei coragem e fui ter com ele a Fargo, na Dakota do Norte. Combinei com ele um fim-de-semana prolongado e disse à Maurice que ia para casa de uns amigos e que lá não teria rede.

Chegado a Fargo, fomos para um hotel que eu tinha reservado para nós.

Eu precisava mesmo muito de falar com o Shade, mas ainda não sabia como iria ele reagir ao que eu tinha para lhe dizer.

- Olha Shade, apesar de me sentir feliz como nunca me senti com ninguém, eu tenho absoluta consciência de que gosto de um rapaz que já morreu e namoro com outro rapaz que, bem, nem sei bem o que é que temos ao certo.

O Shade ficou bastante surpreendido com a revelação e durante algum tempo não me disse nada. Quando finalmente falou, levantou a cabeça e olhou-me com aqueles lindos olhos brilhantes e disse-me, na sua voz serena e profunda:

- Eu também nunca senti nada assim por ninguém como sinto por ti, Jules.

Fiquei a pensar no que havia de lhe dizer em resposta a isso. Eu tinha outra bomba para lançar ao Shade, mas não estava certo de estar preparado para arruinar algo tão bonito como o que já vivíamos.

Comecei por desabafar em como me sentia triste e inseguro no relacionamento com o Matoskah. De facto, agora que ele estava mais empenhado do que nunca nas actividades da tribo com vista a vir a ser um líder no futuro, eu e ele mal nos víamos ultimamente. Quando nos víamos, era certo e sabido que Matoskah queria sexo, mas eu já me tinha habituado ao tipo de sexo que o Shade me fizera descobrir, o que era estranho para o Matoskah, que era mais “selvagem” nesse aspecto.

- Tens-me a mim. Eu sei que não sou perfeito, mas eu posso cuidar de ti, Jules! Não te peço nada em troca, nada que, acho eu, não me possas dar…

- Isto vai soar estranho… - declarei. - Mas eu tenho algo muito importante para te dizer, Shade. Eu tenho pensado muitos nas inúmeras coincidências que existem entre nós. Vai daí que…

- Vais dizer-me aquilo que eu já sei…

- Já sabes? Como?

- Vais dizer-me que eu andei a fazer-te stalking e que achas que eu só me estou a querer aproveitar de ti, com vista a sacar-te dinheiro, quem sabe no futuro a fazer chantagem contigo! E claro, vieste até cá para acabares tudo comigo e deixarmos de falar!

Fiquei chocadíssimo com a expressão que lhe irrompeu no rosto. Shade estava aterrorizado com a ideia de me perder! E eu também estava, na verdade.

 - Não, Shade! Não é nada disso! Bom… Eu não sei como vou dizer-te isto, mas…

- Mas…?

- Shade… Eu peguei no preservativo que usamos da primeira vez que estivemos juntos e mandei fazer umas análises. Desde o primeiro momento em que te vi que eu achei que eras alguém bem especial. O resultado das análises chegou há algum tempo. Bom… Aqui vai… Shade… Eu e tu somos irmãos…. Somos irmãos gémeos falsos28

- O quê? - exclamou Shade, com uma expressão totalmente abismada. - Não, não pode ser! É verdade que somos bastante parecidos, até adivinhámos às vezes o que o outro está a pensar e assim, mas isso não pode ser verdade!

Abracei o Shade com muito carinho. 

Ele começou a chorar. 

Eu comecei a chorar. 

Beijamo-nos intensamente. Olhei-o nos olhos. Vi neles o que o meu coração sentia também.

Aquela informação, felizmente, não iria mudar nada entre nós. Eu e o Shade queríamos ficar juntos e não seria aquilo que nos iria impedir. Eu continuava a gostar do Daniel, mas ele já estava morto. Ainda nutria algo pelo Matoskah, mas nem eu sabia bem o quê. Só me restava pedir a Deus perdão pelos meus pecados, quando chegasse a hora.”


Completamente horrorizada, Bianca levantou a cabeça do diário, lívida como cal. Ainda em choque, ela dirigiu-se ao seu quarto, para verificar algo no portátil do seu irmão.

Ao abrir o computador, Bianca procurou pela pasta misteriosa. Ao deparar-se com ela, escreveu:


“SHADE”

 
A palavra-passe estava correcta e finalmente Bianca acedeu à pasta secreta que estava protegida por palavra-passe no portátil de Jules! Na pasta, estavam conteúdos diversos: 

Fotografias que Jules tirara com Matoskah, Takoda e os restantes amigos;

Fotografias com Shade; 

Músicas que Jules tinha composto; 

Músicas que Jules tinha recebido, como dedicatórias de Shade; 

Havia ainda um vídeo, que tinha como legenda:


Ler a carta primeiro e seguir as instruções à risca. 
Só depois é que deves visualizar o vídeo.


A carta de Jules era dirigida a Shade.


“Querido Shade,

Meu amado, minha luz, minha perdição.

Sinto-me na pior das tempestades, na mais negra das noites sem rumo e sem fim.

Ainda me sinto doente depois do que aconteceu com o doutor Michael. Ainda bem que pude contar contigo para me tirares da casa daquele estupor. Li sobre os efeitos da droga que descobrimos que ele colocou na bebida. Ele é mesmo um sacana e espero que seja feita justiça! 

Sinto-me pior do que lixo por me ter envolvido com ele. Não sei como me deixei levar pela cantiga dele. Não merecias que eu te fizesse isso, bem como o Matoskah. Fui um estúpido e um puto mimado, mesmo.

Não te mereço, nem mereço o Matoskah!

Vocês foram as maiores alegrias da minha vida. Amo-te como nunca amei ninguém, apesar de continuar a amar o Daniel. 

Ele foi, é e será para sempre o meu amor inventado…

Eu tenho plena consciência de que corro perigo de vida, como já te contei...

Já sei quem é a Mão Divina. Foi uma surpresa muito inesperada para mim. Confirmei tudo o que suspeitava hoje. Bolas, foi um verdadeiro choque. Sei que me prometeste ajudar, em nome do que nutres por mim.

Se me acontecer alguma coisa, querido Shade, por causa do que estou a fazer agora, tens aqui a prova final em vídeo, sobre quem é a verdadeira Mão Divina e como é que age.

Consegui gravar este vídeo com uma microcâmara escondida do meu pai.

LOL.

Desculpa.

Ele não é meu pai.

Nem é teu.

Coitado, o Eddie cuidou de mim sem saber que a nossa mãe o traiu.

Enfim. 

Ajustarei ou ajustaremos contas com ela, um dia. Estou muito triste, decepcionado e revoltado por ela te ter dado para adopção e ter-nos impedido de termos sido felizes juntos!

Quem sabe não tivéssemos chegado a este ponto, se ela não o tivesse feito!

Outra coisa, meu amor. 

Não podes ouvir o vídeo, senão cais na armadilha da Mão Divina! Lê nos lábios! Repito: lê nos lábios! Só assim não cairás na armadilha! Tem cuidado contigo!

Perdoa-me se algo correr mal! Perdoa-me por ser um tolo egoísta, que julga que vai fazer a diferença, aceitando o destino implacável que escolheram para mim! 

Já transferi todo o meu dinheiro para uma conta secreta, que abri em teu nome e no meu. Mandei-te os detalhes da conta por sms. Se me acontecer algo, querido Shade, quero que saibas que fui infinitamente mais feliz ao teu lado do que alguma vez esperei ou sequer imaginei vir a ser!

Obrigado, do fundo do meu coração, por cuidares de mim e me fazeres sentir o rapaz mais amado do mundo. Se me acontecer algo, espero que tu possas vingar-me. Em nome do amor que nos une, imploro-te que se me acontecer algo, tu dês cabo desta maldita Mão Divina!

Não permitas que a Mão Divina roube mais vidas…. 

Imagina quantas pessoas poderiam ter sido felizes, como nós somos, se não fosse a Mão Divina…?

Beijos eternos com muito amor,

Do teu,
Sempre,
Jules

P.S. - Se alguma vez te cruzares com o Matoskah, por favor, pede-lhe perdão por mim. Não tive coragem para o fazer. Fui um cabrão egoísta, vou mesmo pagar o preço da fama que ganhei…

Gostava de te pedir o favor de doares algum dinheiro da nossa conta para que a tribo dele possa adquirir alguns bens e ferramentas, pode ser? Não levas a mal? Vais gostar muito deles, são pessoas que te podem ajudar a encontrar um novo rumo na vida, acredita!”


Bianca, movida pela curiosidade, preparava-se para clicar no vídeo, desligando o som. Ao ouvir Maurice a dar um grito na cozinha, ela pegou no portátil, colocou-o numa mochila e desceu as escadas a correr.

Um cheiro intenso a gás atingiu-lhe as narinas. Apercebendo-se do perigo iminente, Bianca hesitou entre procurar Maurice e fugir de casa! O instinto de sobrevivência falou mais alto!


·

Afastando-se sem nunca olhar para trás, Bianca foi atirada para o chão, com violência, poucos metros depois, devido ao impacto de uma explosão de gás que destruiu completamente a sua casa!

Um carro parou ao lado de Bianca e um vulto abriu a porta do pendura.

- Entra aqui, Bianca! Corres perigo! Depressa!

Sem pensar duas vezes, totalmente chocada com o que acabara de acontecer, Bianca entra no carro e este parte a toda a velocidade, enquanto dois vultos fugiam a correr, nas imediações do que restava da casa da família Sullivan.


Nota do Autor:


28 - Jules explica ao irmão que eles são irmãos gémeos falsos. Numa linguagem mais técnica, o termo correcto é “gémeos dizigóticos” ou “gémeos fraternos”.


[Continua...]

29 abril 2021

Escrito nas Entrelinhas: Parte 2 ~ Capítulo 19

 


Capítulo 19


A notícia que a Mão Divina tinha sido apanhada em flagrante espalhou-se rapidamente pela cidade. Dezenas de telemóveis começaram a tocar em poucos minutos, todos de pessoas que, directa e indirectamente, estavam a trabalhar nas investigações. Quando Shappa recebeu a novidade, ela foi levar Bianca a casa, não dando tempo para que esta soubesse de mais nada.

- Daqui a pouco saberás pelas notícias, minha querida! Adeus! - gritou Shappa, ao despedir-se e partir a grande velocidade.


·


Numa das chamadas feitas alguns minutos mais tarde, uma voz metálica comentou:

- “Apanharam aquele idiota. Como é que ele foi capaz de se deixar capturar tão facilmente?

Em resposta, várias vozes responderam de imediato:

- “Ele, de todos nós, era o mais inocente e fraquinho. Cumpriu a sua parte. Pelo menos, não nos atraiçoará.

- “Têm a certeza disso?” - questionou a primeira voz.

- “Eu vou visitá-lo imediatamente…. Deixarei uma prendinha para ele e apagarei as provas que ele possa ter deixado para trás. Não tivemos tanto trabalho para agora tudo cair por terra.” - declarou uma voz suave, perante uma exclamação afirmativa de quem participava na conversa.

- “A Agatha como ficou?” - perguntou novamente a primeira voz.

- “Ainda está viva, mas logo à noite tratarei pessoalmente da saúde dela…” - afirmou outra voz, divertida.

- “Não podemos cometer mais erros! Apesar de tudo estar a nosso favor, não podemos dar-nos ao luxo de cometer erros! O Messias não nos perdoará tamanha desfaçatez!” - ordenou a voz metálica, com ar zangado.

- “Tudo corre conforme o plano. Entretanto, pelo que conseguimos obter do computador do Jules, ele não tinha nada de especial. Era apenas um miúdo doente como os restantes! Só isso!” - suspirou outra voz, com ar aborrecido.

- “Ainda assim, alguma coisa nos está a escapar. Aquela fedelha, a Bianca, é ela quem tem descoberto as coisas sobre nós! Alguma coisa nos falhou no plano!

- “Ela quer saber porquê que o irmão se suicidou. Mas também não tem tido melhor sorte do que todos os outros. E está longe de fazer a ligação. A única que soube de algo foi a Cher e essa já teve o final que merecia! Quem é que a mandou ser uma idiota metediça?

- “Pudera! O nosso plano é infalível! Ainda assim, é melhor colocar a Bianca na nossa ementa: ela será o prato final que vamos degustar em Grace Falls! Ah ah ah ah ah!” - rematou a voz metálica, desligando de seguida.


·


Quando Bianca entrou em casa, para sua surpresa deparou-se com Maurice e o seu pai, que tinham regressado juntos à cidade. Bianca chorou emocionada nos braços dos dois, que ficaram com ela a conversar durante muito tempo. Eddie estava muito perturbado com a morte inesperada da mulher e desejava sair da cidade o mais depressa possível. Estavam eles a conversar sobre o local onde iriam jantar naquele dia, quando de repente, ouviu-se uma violenta explosão.

- Ó meu Deus! O que foi aquilo? - questionou Maurice, benzendo-se.

Eddie ligou a televisão, enquanto Bianca foi à janela. Uma coluna de fumo erguia-se nos céus, não muito longe dali. Na televisão, Mitch, o repórter da GFNews, falava com ar grave.

- “Foi capturado hoje aquele que a polícia acredita ser a pessoa por detrás da Mão Divina. Depois de assaltar, agredir e violar Agatha, a médium da cidade, alguém entrou na loja que Agatha tem e manietou o violador, que tinha consigo uma marca idêntica aquela que é reconhecida como sendo a marca da Mão Divina. O suspeito é… Nada mais, nada menos do que Théo, o jovem farmacêutico da cidade, que terá de prestar contas pelo que fez a Agatha. Théo foi também acusado da morte do doutor Michael, uma vez que ele era conhecido por dar injecções a pacientes por toda a cidade. Relembro que o doutor Michael foi morto de forma macabra, tendo sido decepado enquanto ainda estava vivo, graças a uma série de injecções que levou.

Bianca gemeu ao ver imagens de Théo a ser levado por agentes do FBI, para uma carrinha blindada. Várias pessoas gritavam e atiravam-lhe coisas, mas Théo aparentemente não se importava com isso. Ele sorria para a multidão, divertido.  

- “Vocês podem ter-me apanhado, mas nada vai acabar com o que eu comecei! Este mundo está podre! Vocês vão ser todos punidos! Mão Divina para sempre!” - gritou Théo, triunfante, retirando um frasco do bolso e bebendo o seu conteúdo!

De imediato, Théo começou a espumar e a esbracejar. As imagens foram cortadas e a emissão regressou ao estúdio, onde Mitch anunciava com ar grave:

- “Senhores telespectadores, temos várias notícias de última hora! A primeira é que Théo, o jovem farmacêutico da nossa cidade, chegou já sem vida ao hospital! As equipas forenses desconfiam que ele tenha ingerido arsénio ou algum outro veneno extremamente letal, para não ser obrigado a falar o que sabia! Entretanto, enquanto as autoridades o levavam para o hospital a fim de ele ser examinado, ficou-se a saber que Agatha, a vítima mais recente da Mão Divina, desapareceu! Ninguém sabe como, mas ela não se encontra no quarto onde estava hospitalizada! Como se tudo isto não bastasse, acabamos de saber que ocorreu uma enorme explosão na farmácia que a família de Théo geria na cidade. Ao que tudo indica, não houve vítimas mortais, já que não se encontrava ninguém nas redondezas, mas a explosão demoliu completamente o edifício! Foram já destacadas equipas para o local, a fim de investigarem o que aconteceu!

- Chega! Isto já é demais! Vamos embora quer tu queiras, quer não, Bianca! - resmungou Eddie, com ar zangado. - Esta cidade tornou-se insuportável! Vamos começar uma vida nova lá em Washington!

- Tu podes ir, pai! Eu não vou! Não pelo menos até esclarecer umas coisas! - resmungou Bianca, entre choros. - Estou farta de mentiras e segredos! Eu quero descobrir o que aconteceu com o Jules! E com a mãe também!

- E vai fazer alguma diferença agora? Achas que ficar nesta maldita cidade vai mudar alguma coisa, Bianca? - inquiriu Eddie.

- O meu sexto sentido diz-me que sim, pai! Além de que… - Bianca calou-se.

- O teu sexto sentido? Desde quando é que tu acreditas nessas coisas? Acho que andas a ver muitos filmes, filha!

Bianca fez finca-pé.

- Pai… Eu entendo se tu quiseres ir embora. Somos ambos adultos e cada um de nós tem a sua maneira de ver e sentir as coisas. Sempre foste um pai ausente, de qualquer das formas. Não vai fazer muita diferença agora, no fim de contas. Tu não entendes aquilo que eu estou a sentir!

- Explica-me, então!

- Eu estou a conhecer um Jules que nem eu, nem tu, nem ninguém, provavelmente conhecia. E sabes como? Através deste diário! - afirmou Bianca, tirando o diário da sua mala. - O Jules sofreu bastante em silêncio, porque todos nós não estivemos atentos à sua dor! Tu sabias que ele se cortava com frequência? Tu sabias que ele sofria por ser rejeitado pelos amigos?

Maurice sentou-se no sofá, destroçada. Eddie olhava para Bianca e Maurice, com o rosto pálido como a cal.

- O que queres dizer com isso, Bianca? E que se passa contigo, Maurice? Existe alguma coisa que eu deva saber? - questionou Eddie, quase sem voz.

Maurice fungou e depois de se assoar, respondeu:

- Eu sabia que o menino Jules não andava bem… Eu vi muitos papéis ensanguentados no caixote do lixo, mas ele garantia-me que eram hemorragias nasais… Há muito tempo que a única coisa que o mantinha com um brilho nos olhos era aquele menino indígena… Quando se falava nele, parecia que o menino Jules rejuvenescia, aqueles olhos, aquele rosto…. Iluminavam-se imediatamente! Ele gostava muito do jovem Matoskah!

- Lá isso é verdade… Ele tinha uma admiração enorme pelo rapaz, até passou a andar descalço por culpa dele. - gracejou Eddie, com um sorriso.

Bianca levantou-se, pegou no tablet e mostrou ao pai.

- Olha pai! Olha o que andavam a falar do Jules na rede social “Shhhh!”!




Chocado, Eddie leu algumas dezenas de comentários. Lágrimas corriam pelo seu rosto. Em silêncio, ele virou costas e disse:

- Eu vou-me embora… Se precisarem de mim, estarei em Washington. Lamento imenso por ter sido um péssimo pai…. Espero que um dia me consigas perdoar…

- Espera, pai! Espera! Não foi nada disso que eu quis dizer! - gritou Bianca, mas Eddie meteu-se no carro e arrancou imediatamente.

Maurice abraçou Bianca, que chorava copiosamente, infeliz.

- O seu pai está a ser vítima de muita pressão. Tem de ser mais paciente com ele…

- E eu, Maurice? Como suporto eu toda esta dor e agonia?

- Reze muito, minha querida! Tenha fé e reze muito! Estranhos são os caminhos do Senhor, nosso Deus! Mas ele sabe que aqueles que provarem a sua lealdade, serão recebidos no Céu! Eu vou preparar algo para a menina comer! Vá tomar um banho!



·


Obedecendo, Bianca assim o fez. Enquanto se banhava, pensava em tudo o que tinha acontecido. Alguma coisa não batia certo naquela história. Qual teria sido a motivação de Théo? Porquê violar Agatha? Depois de tanto tempo juntos, custava-lhe a crer que Théo fosse capaz de fazer mal a uma mosca. No entanto, ela não podia negar que este tinha efectivamente, violado Agatha. Vendo-se encurralado, tinha-se suicidado. Ainda assim, Bianca sentia que algo estava errado. Restava saber o quê.

Mais calma, Bianca jantou na companhia de Maurice. Eddie ligou-lhe, pouco antes de dormir, a pedir desculpas e a dizer-lhe para ir ter com ele. Bianca mostrou-se inflexível.

- Desculpa pai, mas eu só vou embora quando souber o que realmente aconteceu! Eu tenho a certeza que a resposta que procuro está aqui, no diário! Já falta pouco! Em breve saberei e irei ter contigo! Preciso ainda de falar com umas pessoas!


*5 de Agosto de 2017*


Bianca já tinha confrontado quase todos os colegas de Jules. Alguns, envergonhados, reconheceram os escritos nas redes sociais e pediram-lhe desculpas. Naquela tarde, Bianca finalmente encontrara Roger, que ela desconfiava ser o autor de grande parte dos comentários odiosos nas redes sociais. Roger estava numa esplanada, rodeado de amigos. Desde que Jules tinha caído em desgraça que Roger se tornara um dos rapazes mais populares da cidade. Quando confrontado por Bianca, este respondeu-lhe com desdém:

- O que interessa isso agora? O teu irmão já morreu, não foi? Se ele morreu, foi porque era um fraco, porque não sabia suportar as críticas! Ele era um merdas, que andava sempre acompanhado do guarda-costas, aquele índio maluco que mais parecia um macaco no funeral do teu irmão! O teu irmão tornou-se um miserável! Até passou a andar descalço só para agradar aos macaquinhos com penas na cabeça!

Todos os colegas que estavam com Roger riram-se com aquele comentário e alguns até aplaudiram-no. Ao escutar aquilo, Bianca perdeu as estribeiras e pregou um par de estalos a Roger.

- Olha lá, deves achar-te o maior, não? O gajo com mais tomates aqui na zona! Pois bem, ficas a saber uma coisa: se continuares a agir assim, tu nunca vais ser ninguém na vida! Não passas de um puto mimado, um puto invejoso, ranhoso, que tem a mania que é bom! Tu és um miúdo inseguro e provavelmente és um rapaz homofóbico, só porque tens vergonha de assumir a sua homossexualidade! És um triste! Podes ter a certeza disso! O meu irmão era gay. E depois? O que tens tu a ver com isso? Incomoda-te? Tens raiva porque ele não se fazia a ti? Roger, arranja uma vida e deixa de estragar a vida aos outros! Idiota!

Roger levantou-se e agarrou os braços de Bianca.

- Olha lá, minha cabra…! Que tenha sido a última vez que me ameaças e falas nesse tom, ouviste?         

- Senão o quê? - perguntou uma voz.

Todos se voltaram. Era Chayton. Estava com um ar bastante zangado.

- Eu ouvi toda a vossa conversa! Eu aconselho-vos a todos a sumirem daqui imediatamente, se não querem ir presos! Eu sou advogado e podem ter a certeza de que este “macaco” vos coloca na cadeia em três tempos! - vociferou.

Roger e o seu bando levantaram-se a correr, assustados! Chayton estava com um ar ameaçador. Bianca encolheu-se. Nunca tinha ouvido Chayton falar num tom tão agressivo!

- Bianca…. Desculpa se te assustei…

- Senhor Chayton! Mas que surpresa! Há dias que não sei da sua esposa! Já estou farta de lhe ligar, mas o telemóvel está sempre desligado!

- Sim, eu sei. Foi por isso que regressei à cidade. Vim transmitir-te um recado… Não podemos falar mais pelo telemóvel, as linhas estão a ser monitorizadas. Antes de mais, bonitas palavras as que disseste há bocadinho. Eu já estou a par de tudo o que se anda a passar. Lamento imenso que estejas a descobrir tudo isto sobre o teu irmão assim. Ele deveria ter tido a coragem para se abrir contigo…

- É isso que eu não percebo! Porquê? Porquê que o Jules não me contou nada?

- A nossa opinião… É que o Jules tinha tanto medo de ser rejeitado que preferiu suportar o peso deste fardo sozinho. Ele tinha medo de que vocês deixassem de gostar dele, sabes? Mesmo com os meus filhos, ele por vezes não sabia gerir os seus sentimentos. Ora aproximava-se, ora afastava-se. Ele ainda não sabia bem onde se encaixar.



·


- Ele podia ter falado, caramba! Eu teria ajudado, de alguma forma! - rematou Bianca, pesarosa.

- Estarias tu em condições de o ajudar? De acordo com o que me contou a minha esposa, tu ainda estás a digerir o facto de o teu irmão ser gay…

- ‘Tá bem, ‘tá bem…. É verdade. Ele era gay. E depois? Inicialmente isso foi um choque para mim, porque me habituei a vê-lo sempre rodeado de raparigas bonitas, a ser sempre educado e sensível. Ele era um rapaz lindo e muito charmoso. Mas…

- Mas…?

- Ele afinal estava apaixonado por um rapaz… E chegou inclusivamente a ter algo com o seu filho Matoskah. - confessou Bianca, envergonhada.

- Sim, eu soube disso. Ainda nos rimos um pouco com a situação caricata em que o Jules e o Matoskah foram apanhados pelo Takoda. São coisas da vida. O mais importante era que o Jules finalmente tinha encontrado o seu lugar no ciclo da vida.

- Se assim é, não acha estranho que ele tenha cometido suicídio?

- Talvez ele tenha achado o seu lugar, mas não o tenha aceitado. Sabes, Bianca? A vida é simples, mas nós, os seres humanos, temos tendência a complicá-la com os nossos medos, os nossos egos, as nossas necessidades de agradar aos outros…

- Você agora parece a Shappa a falar… E por falar nisso, o senhor sabe aonde é que ela está?

- É por esse mesmo motivo que eu vim aqui à cidade, minha filha. A minha esposa está num acampamento de uma tribo nossa aliada, em segurança. Ela levou a Agatha para lá, assim que ambas se aperceberam que corriam perigo aqui na cidade. O pesadelo ainda não acabou. A Mão Divina pode ter sido capturada, mas elas desconfiam que exista mais uma pessoa pelo menos, envolvida nisto. Desconfiam que a pessoa que é a verdadeira Mão Divina ainda está por aí, à solta. Acham que a captura de Théo foi apenas uma manobra de diversão. O modus operandi encaixa e ao mesmo tempo não encaixa no perfil da Mão Divina. O facto de ele ter-se suicidado à vista de todos demonstra uma profunda convicção no que estava a fazer. E isso é assustador. O Théo preferiu morrer a falar o que sabia. A minha esposa e a Agatha fazem questão que tu me acompanhes, pois aqui não estás mais em segurança.

Bianca sorriu e negou com a cabeça.

- Eu agradeço a vossa preocupação, mas vou ter de recusar o pedido. Eu já sei o que tenho de fazer. Eu serei o isco para capturar a Mão Divina. Tenho a certeza de que o diário do meu irmão contém as pistas que me faltam para saber tudo. O Théo pode ter sido apanhado, mas concordo que ele pode não ter agido sozinho. Tem cúmplices, estou certa disso.

Chayton levantou-se, verdadeiramente impressionado.

- Filha, vejo nos teus olhos que diga eu o que disser, nada te demoverá. Só te posso desejar boa sorte e pedir aos Grandes Espíritos que te protejam e te conduzam à vitória.

- Obrigado.

Com uma vénia, Chayton aproximou-se de Bianca e deu-lhe um forte abraço.

- Por favor Bianca, tem cuidado contigo. Oxalá descubras as respostas que procuras!

- Eu vou já tratar disso! - respondeu esta com um sorriso.

Passados alguns minutos, Bianca estava fechada no seu quarto, abrindo o diário do irmão.


*Diário de Jules, Página 237*


Querido diário,

Depois de muitas dúvidas e discussões com o Matoskah, acabei por ceder à tentação. Criei um perfil no Finder.





O Finder é um aplicativo para homens gays conhecerem outros homens gays. Já tinha ouvido falar muito deste aplicativo, mas sempre tive repulsa em utilizá-lo. Afinal, a minha ideia de aplicativos gays é a de que os homens que os usam só têm um objectivo em mente: foder. 

E para foder, ora foda-se, tenho o Matoskah. Aquele parece que anda sempre com o pau ao alto. Mal me vê, fica logo excitado e não consegue disfarçar essa alegria.

Ok…. Confesso que eu também fico excitado por vê-lo excitado! É bom demais! 

Agrada-me sentir-me assim, tão amado e desejado.

O problema é que ele só pensa naquilo. Trocamos uns beijos e pronto, já quer que eu faça aquilo, já quer meter-me aquele fenómeno da natureza dentro de mim.

Enfim….

Falta-lhe romantismo.

Já estou cansado de lhe chamar a atenção disso, mas acho que ele é assim e eu tenho de aceitar. Não posso negar que quando quer, o Matoskah consegue ser mais paciente e romântico.

Claro que para isso, ele precisa de se aliviar primeiro. Quando ele está mais “relaxado”, as coisas tendem a ser mais prazerosas para mim também.

Enfim.

Tive outra discussão absurda com ele. Desta vez porque eu me queixei de estar com dores e ainda assim ele me provocar. Acabamos por nos masturbarmos mutuamente e como se não bastasse, ele atirou-me a t-shirt com os “vestígios finais” à cara, enquanto se ria, satisfeito e com um ar safado.

Oh pah, desta vez levei a mal.

Senti-me usado. 
Senti-me lixo. 
Sei lá…. 
Senti-me mal. 
Não gostei.

Virei costas e saltei para a mota. Ele ainda veio a correr atrás de mim, mas acelerei o mais que pude. Quis castigá-lo e mostrar-lhe que estava magoado. Ele ainda conseguiu acompanhar-me durante algum tempo, mas depois ficou para trás.  

Quando cheguei a casa, ele já lá estava à minha espera. Pediu-me desculpas, depois de eu contar-lhe o que se tinha passado para ter-lhe virado costas. No entanto, ele agarrou-me e cedo senti o seu desejo a despertar entre as suas vestes. Chateado, disse-lhe para pensar mais com a cabeça de cima e menos com a de baixo e pronto, ele foi-se embora, fodido comigo.

Eu decidi pegar no telemóvel e saquei o Finder.

Não tardou para começar a receber mensagens ridículas, de alguns homens que me enviavam fotos dos seus “tesouros” e queriam que eu mandasse do meu, em troca.

Outros, mais directos, diziam que eu era “bom como o milho” e que queriam fazer sexo comigo.

De início, ainda fui respondendo educadamente a todos eles, mas aquilo deixou-me ainda mais frustrado do que eu já me sentia.

Eu só queria conhecer alguém de jeito, que compreendesse o que eu sentia e que não quisesse só sexo.


[Continua...]

28 abril 2021

Escrito nas Entrelinhas: Parte 2 ~ Capítulo 18

 


Capítulo 18

·




Shappa não tardou a chegar.

Bianca entrou no carro e ambas partiram, em direcção da morgue do hospital da cidade. Por todo o lado se viam postos de controlo. Chegadas à morgue do hospital, depararam-se com o doutor Joshua a conversar com outro médico, o doutor Tails. Falavam muito baixinho e pareciam debater algo sério. Quando viram Bianca e Shappa, Joshua fez um ar inquisidor e Shappa apresentou as suas credenciais.

- Sou a doutora Shappa Chayton, do FBI. Venho acompanhar Bianca Sullivan para que esta faça o reconhecimento oficial do cadáver da mãe, Laura Sullivan.

Tails e Joshua trocaram um olhar de surpresa entre si, muito rapidamente. Joshua despediu-se, regressando ao seu consultório. Já o doutor Tails agradeceu a Shappa e conduziu as duas até ao local onde o corpo de Laura estava preservado.

- Talvez seja melhor colocar uma bata e uma máscara, Bianca… O corpo da sua mãe já está em alguma decomposição e poderá causar-lhe náuseas… - comentou Tails.

- Eu vou ser forte! Eu tenho de ser forte! - reclamou Bianca.
 
O doutor Tails destapou um cadáver e tal como previa, Bianca foi-se imediatamente abaixo. Laura tinha ainda algumas roupas vestidas, uma grande mancha de sangue no peito e partes do seu corpo em falta, provavelmente por causa de algum animal que a tinha encontrado. Assim que viu o corpo da mãe, Bianca deu um grito, a que se seguiram vómitos. Tinha ficado muito agoniada com a visão do corpo da mãe dela. 

- Só conseguimos encontrar a sua mãe graças à tecnologia que o FBI possui, sabe? O corpo estava preso entre uma saliência muito ingreme e totalmente oculto a olho nu. Felizmente, com as novas tecnologias criadas pela empresa do seu pai, foi possível recuperar o corpo da sua mãe. Lamento imenso que tenha de a ver assim… - rematou Tails, tapando novamente o corpo.

- O meu pai, onde está?

- Ele já falou com o FBI e está a par de tudo. Esperamos o seu regresso a qualquer momento entre hoje e amanhã. - esclareceu Shappa, encaminhando Bianca para fora da morgue.     


Um telefone tocou, não muito longe do local onde se encontravam. Um vulto observava Bianca, através de uns binóculos.

- Estou? Quem fala?

- “Daqui fala Messias…. És tu?

- Mão Divina! Oh sim! Mas que honra voltar a escutar esta bela voz!

- “Estamos a ficar sem tempo. O cerco aperta-se. Ainda não resolveste a missão que te incumbi…

- Peço-lhe inúmeras desculpas! A Agatha tem tido imensa sorte! Mas de hoje não passa! Ela vai ter o que merece!

- “Espero bem que sim, que tu resolvas tudo como deve ser! Não podemos correr mais riscos!

- A propósito…. Sabia que a Shappa trabalha para o FBI? Acabei de a ver a sair da morgue onde a Bianca foi identificar a mãe dela, que apareceu morta!

- “A mãe da Bianca apareceu morta?” - perguntou a voz, admirada.

- Não foi você que a matou? - perguntou o vulto, com curiosidade.

- “Não tinha nada contra essa mulher… Ela foi morta? Em que circunstâncias? Sabes-me dizer?

- Parece que foi alvejada no peito no cume do Pico do Diabo. Pensei que era obra sua…

- “Outra vez? Já te disse que não sabia de nada… As coisas estão a sair do nosso controlo! Espero que resolvas a questão da Agatha ainda hoje!

- Farei o meu melhor! Vou dar à Agatha uma lição que ela não se esquecerá tão cedo! - congratulou-se o vulto, esfregando as mãos de satisfação.



Intrigada com tudo o que acontecera naquele dia, mas ainda pensando no que lera até então do diário de Jules, Bianca ganhou coragem e questionou:

- Como é que estão os seus filhos? Porquê que o seu marido não regressou à cidade, Shappa?

Admirada com a súbita conversa, Shappa ficou pálida e estacionou o carro uns metros à frente. Suspirou. Olhou para Bianca com os olhos brilhantes e respondeu:

- As coisas entre o Chayton e eu não andam lá grande coisa ultimamente. Ele tem tido muito trabalho, mas eu também tenho tido. Ainda assim, eu sempre que posso comunico com a tribo e vou sabendo o que se passa. O Chayton não faz nada. Liga-me, pergunta pelos miúdos e manda beijos para eles. Está sempre a queixar-se do excesso de trabalho que tem entre mãos agora, com o Senador Tieman a governar o nosso país. Não faltam pessoas a querer deitar o Tieman abaixo, principalmente empresários que procuram conquistar as terras dos nossos antepassados. Felizmente, que nesse aspecto, termos o Presidente Tieman é benéfico. Ele tem lançado duras campanhas de protecção dos povos ameríndios. Todos nós lhe estamos imensamente gratos por isso, mas ele tem ganho muitos inimigos dentro e fora da Casa Branca. Eu sei que continuo a ser uma péssima mãe para os meus filhos.

Bianca tentou reconfortar Shappa.

- Ohhh, não diga isso! Tenho a certeza de que tanto o Takoda como o Matoskah são bons miúdos! E para isso também contribui a educação que vocês lhes transmitiram! O meu irmão tem… Quer dizer… Tinha… O Matoskah em grande consideração… Ele gostava muito dele…

Shappa sorriu.




·


- Pois é, o teu irmão era um rapaz muito especial. Tinha uma energia semelhante às dos nossos filhos e dos amigos deles. No nosso povo, nós consideramos pessoas como o teu irmão, winkte26.

- Hã? O que é isso? - perguntou Bianca, surpreendida.
  
Shappa retirou uma folha de um caderno e desenhou, para poder explicar a Bianca.
 
 - Na nossa cultura, nós acreditamos que os seres humanos podem pertencer a 5 géneros diferentes: masculino, feminino, transgénero, dois espíritos femininos e dois espíritos masculinos. Os nossos filhos e os amigos com quem eles mais se dão e que já tiveste oportunidade de conhecer, todos eles possuem Dois Espíritos27. Desde cedo que nos apercebemos disso. É, na verdade, uma enorme bênção para uma tribo quando nascem crianças com Dois Espíritos. Cedo nos apercebemos que eles eram assim. E fizemos grandes celebrações!


 

- Espere lá… Como funciona isso? Você sabia que o Jules e o Matoskah tinham um relacionamento? Que eles estavam a namorar?

- Sim, sabia… O Takoda apanhou-os uma vez, a “brincarem” um com o outro, lá em casa. Na altura, o Takoda ainda se assustou, mas depois compreendeu. Quem apanhou um tremendo susto foi o teu irmão. Saiu nesse dia à pressa da nossa casa e esteve sem aparecer durante algumas semanas.

- Então… E o seu marido? O que acha ele de tudo isto? Vocês acham bem? Que eles sejam gays?

Shappa ficou surpresa com o tom de voz de Bianca. Olhando seriamente para a rapariga, respondeu:

- Bianca, quem somos nós para julgar? O teu irmão, como já deu para perceber pelas leituras que fizemos, sofria bastante por causa dessa atitude. Não aprendeste nada com o que lhe aconteceu? Uma mãe sabe sempre. A forma como o Matoskah e os amigos se davam, a forma como olhavam e exploravam o corpo uns dos outros… Eles nutrem um profundo amor uns pelos outros. E isso é, de longe, o mais importante! Eles estarão sempre presentes na vida uns dos outros, até porque cresceram juntos, apesar de cada um vir a governar uma tribo num futuro não muito distante. Mesmo o meu pequeno Takoda anda entusiasmado com o seu primeiro amor. 

- E vocês acham isso certo? Afinal o Takoda só tem 9 anos!

- Como diz o meu filho e muito bem: a idade é só um número. O que realmente importa é o que sentimos no coração. Ele precisa de experienciar e vivenciar, para saber o que realmente quererá no futuro. Tal como o teu irmão fez, tal como o Matoskah e os restantes fazem. Sabes, Bianca? Se a vossa cultura se permitisse viverem mais em prol de vocês mesmos e não tanto para as expectativas que vocês criam uns para os outros, a favor de uma ilusão de sociedade, vocês seriam muito mais felizes. Acredita em mim.

- Ainda me custa a acreditar que o meu irmão fosse assim…. É como se ele fosse uma pessoa completamente diferente daquilo que eu conhecia! - confessou Bianca, por fim.

- Custa-te a acreditar porque tu tens ideias erradas sobre o amor e a entrega a outra pessoa, minha querida. Espero sinceramente que consigas adaptar-te à realidade, porque serás muito, mas muito mais feliz se o fizeres. O teu irmão não deixa de ser quem era só por causa de um aspecto da sua essência. O que ele faz com outras pessoas dentro de quatro paredes… Isso só a ele lhe diz respeito. Tens que respeitar. Agora é o momento certo para mudares a forma  como o vês, se conseguires aceitar isso! Ele amava profundamente o Matoskah. O meu filho gostava dele, tal como gosta do Takoda e dos restantes. O Takoda também é um winkte26. Os restantes possuem dois espíritos que coabitam harmoniosamente uns com os outros, daí a proximidade entre todos eles.

- Olhe lá… E como está o Matoskah? Tem tido notícias dele?

Aos poucos, o sorriso que Shappa tinha no rosto esmoreceu.

- Eu vou-te contar uma coisa, mas por favor, não partilhes com ninguém, está bem?

- Claro que sim! Pode confiar!

- Então… É assim…. O Matoskah, quando esteve em coma, foi abusado sexualmente pelo doutor Michael. Como se isso não bastasse, os médicos que acompanharam o meu filho na clínica militar sujeitaram-no a testes diversos, entre eles, ao uso de um soro, chamado o Soro da Verdade.

- O quê?!? - inquiriu Bianca, atónita.

- Esse soro contém poderosas substâncias que mexem com o nosso sistema nervoso, mas que permitem revelar todos os segredos das vítimas. Foram dadas ordens para injectar esse soro no meu filho, com o objectivo de saberem o que sabia ele da Mão Divina e tudo o que ele sabia sobre o Jules.

- Que horror!

- Foi assim que o meu filho acabou ilibado das acusações de que era suspeito. Aquela droga é uma arma letal e infalível. Infelizmente, devido à sua poderosa acção, o soro provoca danos no cérebro, que podem ir desde amnésia até à perda parcial ou total dos 5 sentidos…

- Ó meu Deus! Isso é horrível! E agora?

Shappa olhou para o horizonte, triste. Depois de dar um longo suspiro, prosseguiu:

- O nosso Matoskah teve de partir na companhia de um indígena muito especial. Aquele homem que apareceu no funeral do teu irmão, ao lado do Takoda, lembras-te?

Bianca recordava-se desse momento. Como poderia esquecê-lo? Ela tinha visto Jules e Daniel a dançarem juntos, a sorrirem um para o outro, envergando lindos fatos de cerimónia! Agora que pensava nisso… Ela tinha visto Jules! Será que as outras pessoas também o tinham visto? De imediato, ela partilhou essa lembrança com Shappa que lhe confirmou aquilo que Agatha também lhe havia dito: naquele fatídico dia, várias almas tinham dançado na igreja, entre os vivos!

- Eles estavam tão felizes…! - comentou Bianca, emocionada. - Agora compreendo…! Mas…! E o Matoskah? Existe alguma coisa que possa ser feita por ele?

- O nosso Matoskah está neste momento no Grand Canyon, onde o misterioso guerreiro espera conseguir devolver-lhe os sentidos. Ele terá de passar um conjunto de provas que lhe permitirão criar uma nova tribo e recuperar os sentidos que perdeu. Não existe mais ninguém que o possa curar a não ser este misterioso indígena…. Só ele tem a sabedoria necessária para tal. Ele é o último membro de um dos mais antigos e míticos povos indígenas.

- Você acha que ele vai conseguir?

- Eu quero muito acreditar que sim, minha querida Bianca! Que os Grandes Espíritos acompanhem o Matoskah nesta missão e ele saia vitorioso!



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*Enquanto isso, no Grand Canyon…*


Matoskah treinara dia e noite para as provas que Wickmunke lhe reservara. Quando finalmente se sentiu preparado, ele declarou, de forma efusiva, o seu desejo ao amigo. Wickmunke congratulou-o e explicou-lhe que ele iria ser testado de diversas formas e que se passasse todas as provas que tinham sido preparadas para ele, ele estaria apto a recuperar os sentidos bem como a tornar-se o líder de uma nova tribo! Animado com essas perspectivas, Matoskah empenhou-se ao máximo.

Na primeira prova, ele teve de subir um penhasco bastante ingreme e trazer do topo um objecto que o seu amigo deixara lá em cima - um cocar lindo, cheio de penas nas sete cores do arco-íris. Era o cocar de Wickmunke.

Na segunda prova, Matoskah teve de enfrentar um grande urso branco. Era uma luta de morte! Matoskah queria evitar o confronto físico com o seu próprio espírito animal, mas tal não lhe foi possível. Depois de ser bastante atacado e ficar em risco de vida, tal como acontecera com o seu irmão, ele viu-se obrigado a usar de toda a sua força, determinação e empenho para derrotar o grande urso branco. Como este apresentasse uma força e resistência fora do normal, Matoskah impregnou os seus melhores golpes, mas ainda assim, o urso branco regressava sempre para lutar mais.

- Tu tens que o derrotar com um golpe final! Ele voltará sempre, a menos que tu aceites que tens de lhe dar o golpe fatal com vista à tua sobrevivência! - gesticulou Wickmunke, com ar zangado.

- Não lhe quero fazer mal! Não o posso matar!

- Tens de fazê-lo! És tu ou ele!   

Matoskah fugiu a correr e escondeu-se do urso branco. Chorou em silêncio, ciente que o próximo confronto com este seria o último. Pediu desculpas aos Grandes Espíritos porque iria tirar uma vida. Em resposta, ele escutou no seu coração:

- “Mitakuye Oyasin, Matoskah!

Chorando e urrando emocionado, o rapaz saiu do seu esconderijo. O grande urso branco não estava muito longe. Cheio de compaixão pelo animal, Matoskah aproximou-se sorrateiramente e com um golpe certeiro, abateu o animal, partindo-lhe o pescoço.

- Muito bem, muito bem! - congratulou-se Wickmunke. - Eu sei que não foi uma prova fácil, mas graças a isso, teremos alimento para o resto do tempo que aqui passaremos! Além disso, poderás usar a pele do urso na tua nova capa! Os Grandes Espíritos vão impregnar a sua força nessa capa!

E assim, durante os dias seguintes, os dois indígenas cuidaram com muito carinho dos restos do urso branco, o animal sagrado de Matoskah. Criaram uma linda capa que Matoskah podia carregar consigo, leve e fácil de usar. Quando a colocou, Matoskah assemelhava-se muito ao seu primo Wakinyan, que também usava uma capa com uma cabeça de animal na maior parte do tempo.

A prova seguinte era uma prova física de resistência. Matoskah teve de subir e descer várias montanhas e tentar fazê-lo no menor espaço de tempo. Apesar de estar habituado a escalar montanhas, ele não estava habituado a suportar condições de tempo extremo. Ora apanhava momentos de muito calor, ora apanhava tempestades com temperaturas negativas. Valeu-lhe nesses momentos a capa que tinha confeccionado com a ajuda do seu companheiro de viagem.   

A cada prova que era bem-sucedido, Matoskah sentia que estava mais próximo de recuperar os seus sentidos. Sabia que o pior ainda estaria para vir, mas estava confiante de que conseguiria vencer, fosse lá o que ainda estivesse para vir.

Uma noite, acordou para se ir aliviar aos arbustos. Quando regressou ao local onde estava a dormir, tinha um bilhete a avisá-lo que para a próxima prova, ele teria que pescar um esturjão. Teria de o dominar e capturar. Admirado, o rapaz foi para um lago onde preparou o isco e o lançou à água.

Durante algumas horas, mesmo apercebendo-se de uma sombra que nadava nas profundezas do lago, Matoskah não teve sorte. O peixe não mordia o isco. Decidido a capturá-lo, ele lançou-se à água e mergulhou. O lago era límpido e muito selvagem. Percebia-se claramente que ainda não tinha sido alcançado pela acção do Homem.

De repente, Matoskah viu o esturjão: era um enorme peixe, com forma alongada, corpo endurecido e bigodes! O esturjão teria pelo menos 5 metros de comprimento! Ele ainda não se tinha apercebido da presença de Matoskah, que decidiu regressar à superfície, para recuperar o fôlego!

Surpreso com o tamanho do esturjão, ele decidiu criar uma armadilha para o capturar, mesmo tendo a certeza de que o animal deveria ser forte demais! Depois de algum tempo a trabalhar, Matoskah mergulhou novamente e partiu em busca do esturjão! Admirado, apercebeu-se que ele não se encontrava na área onde o tinha visto. Qual o seu espanto quando ao virar-se para trás, sentiu uma presença que o observava com bastante interesse: era o esturjão, que olhava para ele como uma saborosa refeição!

Nadando rapidamente para fora dali o jovem Matoskah pôs o seu plano em prática. Desenlaçou uma rede à medida que ia atravessando o lago! Quando percebeu que já tinha dado uma volta ao mesmo e estava a ficar sem fôlego, nadou até à superfície!

O peixe seguia-lhe todos os movimentos! Quando Matoskah correu para a margem do lago, o esturjão saltou para fora de água e foi aí que Matoskah cortou uma última corda que fechou a rede sobre o grande peixe! Este começou a esbracejar e partiu as redes ao fim de várias tentativas! Matoskah viu-se obrigado a usar toda a sua força para lutar e tentar controlar o rei dos esturjões, mas nada o fazia parar! Ele foi arrastado com violência pelo animal, mas usou essa força a seu próprio favor: quando o animal deu uma reviravolta e Matoskah se viu frente a frente, esticou os seus pés para a frente, pontapeando o animal com toda a força na cabeça. Devido ao impacto, ambos foram projectados para a margem do lago, onde Matoskah, por fim, o dominou.

Wickmunke surgiu, instantes depois.

- Que grande peixe que tu capturaste! Parabéns! Não é qualquer um que tem a força e a capacidade para apanhar o rei dos esturjões! Esta será uma façanha que se tornará uma lenda na tua tribo, Matoskah!

- Obrigado! - respondeu Matoskah, por gestos, totalmente esgotado.

- Com esta captura, teremos muito alimento para levarmos na nossa viagem de regresso! Temos de deixar secar a carne e defumá-la. Podemos usar as ovas do esturjão como alimento e nas primeiras trocas de comércio da tua nova tribo, bem como as placas ósseas para fabricar escudos! Para além disso, a cabeça do esturjão será um símbolo de respeito entre aqueles que visitem a tua tribo! Parabéns!

Durante os dois dias, Matoskah não aceitou participar em mais provas. Estava muito esgotado perante os esforços físicos. No entanto, ao aperceber-se que começava, aos poucos, a perder a visão, ele compreendeu que não lhe restavam muito mais alternativas. Quanto mais tempo deixasse passar, pior. 


*31 de Julho de 2017*


Assim, dias depois, ele aceitou a penúltima prova, que consistia num combate físico com Wickmunke. A luta foi muito renhida, mas Matoskah lá conseguiu deitar o companheiro ao chão e sentar-se em cima dele, após várias horas de combate.

- Parabéns Matoskah! Estás a uma prova de passar o conjunto de provas que te estavam reservadas! A próxima prova é a mais importante de todas e também a mais perigosa…

- Em que consiste?

- Saberás quando chegar a hora… No entanto, só saberás quando o momento chegar e não saberás quando será esse momento! Tens de estar com os olhos e a mente bem abertos, o tempo todo!

- Muito bem! Em nome da minha tribo, eu aceito o desafio! - gesticulou o rapaz, com ar determinado.




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*1 de Agosto de 2017*


Agatha acabava de atender o último cliente daquele dia. Com a cidade naquele estado, as pessoas que ficavam na cidade perderam, por fim, a vergonha e acorriam aos serviços de Agatha em busca de protecções, pedidos de ajuda, falar com entes queridos. Nunca o negócio dela correra tão bem. Ela estava a sentir-se particularmente feliz. Quando se  preparava para fechar a porta da sua loja, um vulto surgiu e colocou um pé, para que a porta não fechasse.

- Desculpe, mas por hoje não atendo mais ninguém… Terá de aguardar pelo dia de amanhã, se quiser marcar uma consulta… - respondeu Agatha com delicadeza, apesar de estar um pouco desconfortável.

O vulto fez força e entrou, atirando Agatha ao chão. Fechou a porta atrás de si e de imediato se colocou em cima de Agatha, colocando-lhe um pano embebido em algo que a fez perder os sentidos, poucos instantes depois. Rindo-se divertido, o homem pegou em Agatha e levou-a para a sala onde ela atendia os seus clientes. Deitou-a sobre uma maca onde ela fazia os tratamentos de Reiki e arrancou-lhe a roupa sem dó nem piedade.

Agatha despertou aos poucos, com a vista enevoada e a sentir-se zonza. O vulto estava a baixar as suas calças e no momento seguinte, penetrou-a com toda a força! A mulher gritou e o homem colocou as mãos ao pescoço dela, enquanto falava num tom de voz melífluo:

- Tu andas a portar-te mal, agora está na hora de seres castigada! A Mão Divina vai dar-te o que tu mereces! Ah ah ah ah ah!

- Socorro! Socorro! Alguém…. Me ajude…! - gemia Agatha, com muita dificuldade, enquanto o homem a violava violentamente e mantinha as mãos no pescoço dela, preparando-se para a estrangular!

De repente, um novo vulto surgiu por detrás do violador. Pegando numa bola de cristal que estava numa mesa daquela sala, atingiu o violador com toda a força na cabeça, ao ponto da bola de cristal se partir em pedaços!

- A bola da minha trisavó! - gemeu Agatha, em choque!

O violador revirou os olhos e caiu para o lado, inconsciente.

- A senhora está bem? - perguntou uma voz masculina, por detrás de uma máscara que tinha na cara.

Infelizmente, Agatha desmaiara com as dores que sentia. O segundo homem manietou o primeiro, que aos poucos recuperava os sentidos. Arrancou-lhe o capuz e não pode deixar de exclamar um “Ooohhhh!” de surpresa! O vulto tinha uma tatuagem da Mão Divina!

- Quem…. És tu…? - perguntou o violador.

- Eu sou tu…! E tu és eu…! A Mão Divina! - exclamou o segundo vulto, com alguma surpresa.

Uma expressão de regozijo surgiu no rosto do violador!

- Messias! Eu sabia! Vieste certificar-te que eu cumpria a minha missão! Oh, como estou feliz! Queres matar esta cabra? Vamos matá-la juntos?

O segundo homem virou costas e pegando numa cadeira, partiu-a nas costas do violador.

- Idiota! És um idiota sem miolos! E pensar que…

O segundo homem amordaçou o violador, tapou-lhe o rosto com a máscara e aproximou-se de Agatha que, entretanto, recuperava e tirou-lhe o telemóvel, para pedir ajuda. Agatha abriu os olhos e viu que o homem mascarado a observava, preocupado.

- A polícia e uma ambulância estão a caminho, senhora! Apanhamos a Mão Divina! Boa sorte! Considere paga a dívida que o Jules tinha para consigo! Muito obrigado! Adeus!

O segundo homem virou costas e fugiu a correr. Agatha levantou-se com dificuldades e retirou a máscara que o segundo homem colocara no violador. Fez uma expressão de espanto ao ver o rosto por detrás da máscara. Não era possível! Quando a polícia e o FBI chegaram, de imediato se espalhou a notícia: a Mão Divina tinha sido capturada! 


Notas do Autor:

 
26 - Representa as pessoas que possuem dois espíritos dentro delas, sendo um espírito feminino e outro masculino; Poderia-se traduzir como pessoas transgénero, mas Shappa aqui quis dizer foi que, na opinião dela, Jules e o seu filho Takoda são bissexuais;

27 - Na cultura ameríndia, antes dos jesuítas e os exploradores ingleses e franceses os dominarem, com as suas crenças e idealismos, era frequente os povos indígenas norte-americanos acreditarem que existiam cinco géneros. Desses cinco, dois géneros incluíam pessoas com Dois Espíritos, que podiam ser masculinos, femininos ou um masculino e outro feminino.

As pessoas que nasciam com Dois Espíritos eram muito amadas, respeitadas e valorizadas nas suas tribos. A sua capacidade de verem o Mundo através dos olhos dos dois géneros era visto como um valioso presente dos Grandes Espíritos.

Acreditava-se que estas pessoas tinham o intelecto mais desenvolvido, e por isso, ocupavam posições de respeito, como na Medicina, podendo escolher desenvolver tanto actividades consideradas de mulher, como de homem. Geralmente estas pessoas tornavam-se professores de todas as crianças da tribo e eram muito honradas e respeitadas.

Infelizmente, com a chegada dos jesuítas e dos exploradores ingleses e franceses, os povos ameríndios foram sendo obrigados a optar por apenas dois géneros. Masculino ou Feminino. Quem não conseguia fazê-lo, era obrigado a abandonar as tribos e muitas pessoas acabaram por se suicidar. 


we'wha


We’wha [1849 ~ 1896] [na foto acima], foi uma das pessoas mais conhecidas entre as pessoas Dois Espíritos. Ele pertenceu à tribo Zuni. Biologicamente, era um homem, mas tinha um espírito feminino. We’wha era tão respeitado e inteligente que, em 1886, tornou-se Embaixador dos Povos Nativos Americanos, em Washington. Desconhece-se quantas pessoas Dois Espíritos existem actualmente.


[Continua...]