21 abril 2021

Escrito nas Entrelinhas: Parte 2 ~ Capítulo 16

 


Capítulo 16

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*Diário de Jules, Página 21*


Tudo foi muito estranho e confuso. No primeiro momento beijei o Daniel e ele beijou-me a mim. No momento seguinte, os nossos corpos estavam a fazer uma luta na vertical, enquanto as nossas mãos exploravam o corpo do outro. Confesso que mais tarde tudo aquilo me causou repugnância, mas naquele momento, eu só pensava em como era bom estar ali, na companhia do Daniel.

Ele sempre foi um rapaz bonito. Tímido e pouco falador, acho que a maior parte das pessoas da cidade mal o conheceu verdadeiramente. E, no entanto, o Daniel era gentil, bem-educado e de um coração enorme. Fazia muitas coisas pelos vizinhos sem que estes soubessem. Ajudava sem esperar nada em troca. Era um bom rapaz…

Naquele Verão, depois daquela experiência, ainda fomos para a cascata de Grace Falls algumas vezes. Ambos sabíamos o que significava quando o outro convidava para ir até lá. Aquele passou a ser o nosso refúgio secreto. Foi nesse Verão que me apercebi que os rapazes tinham um corpo bonito.

Eu odiava sentir aquilo.

Sentia-me estranho.

Mas, quando me masturbava à noite, se pensasse no Daniel e mais tarde, noutros rapazes que também iam brincar para a cascata, a verdade é que tinha muito mais prazer e mais facilmente atingia o orgasmo, do que se pensasse em raparigas.

Nesse aspecto, acho que o Daniel lidou melhor com as coisas do que eu. Ele fazia-me sentir sempre confortável, pelo menos até ao momento em que eu ejaculava. Aí, um misto de nojo e tristeza invadia-me. Ele sabia disso e respeitava os meus silêncios depois de “brincar”. Sabia que se me dissesse alguma coisa, eu poderia ficar mesmo zangado e virar costas, sem lhe dizer mais nada. 

Um dia, pouco antes de começarem as aulas desse ano, ele tentou abraçar-me e depois beijar-me. Isto durante um desses momentos de silêncio. Eu já estava meio chateado e triste nesse dia. Quando ele me fez isso, empurrei-o para o lado e disse-lhe para não me dirigir mais a palavra. Virei costas a correr, triste e a chorar, infeliz.

De forma alguma eu queria ter-lhe dito aquilo. Ele era o único amigo que eu tinha que sabia disto. E eu tinha-o expulso da minha vida, assim sem mais nem menos. Senti-me pior que a criatura mais desprezível que existe à face da Terra.

Nesse dia, quando cheguei a casa e me comecei a lavar, cortei-me pela primeira vez. Estava deitado na banheira, quando me cortei com um x-acto. Ver o sangue a sair, a misturar-se com a água translúcida, fez-me chorar. 

Chorar não de dor, mas de alívio.


Bianca parou a leitura, muito triste. Pousou o diário e foi até ao jardim. Recostou a cabeça numa parede e deixou-se escorregar até ao chão. O irmão dela descrevia tudo com tamanha clareza que ela estava arrepiada. Sempre que falava com o irmão este aparentava estar bem e feliz, embora ela por vezes pensasse que ele lhe mentia, apenas para não a deixar preocupada. No entanto, pelo que lia agora, o irmão realmente estava mal, fazia já bastante tempo.


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*27 de Julho de 2017*


- Chegamos! Este é o nosso destino! - declarou Wickmunke com um sorriso expressivo, através de gestos, ao seu parceiro de cavalgada, Matoskah.

Os dois ameríndios tinham deixado a Reserva há mais de 14 dias. Era um longo caminho que eles tinham percorrido.

- Olha lá, onde estamos, afinal? Disseste que só me revelarias quando chegássemos! - comentou Matoskah, por gestos.

- Estamos no Grand Canyon! É neste local que tu vais ser colocado à prova, Matoskah! Os Grandes Espíritos estão desejosos de te restituírem o que perdeste, mas para tal, tens de passar nas provas que eles decidiram para ti.  


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Grand Canyon


- A vista é espectacular! - congratulou-se Matoskah, olhando tudo ao seu redor! - Que sítio lindo! 

- Vamos descansar durante uns dias. Daqui a uma semana retomamos o teu treino e quando achares que estás pronto, farás as tuas provas… - comentou Wickmunke, colocando um braço por cima dos ombros de Matoskah.


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*Enquanto isso, em Grace Falls…*


- Ó querida, podes preparar-me a injecção, por favor? - inquiriu James.

- Claro que sim, dá-me uns segundos e já te faço isso… - comentou uma mulher ruiva, com um sorriso.

James estava todo satisfeito. Ele tinha acabado de assinar uma declaração onde passava a sua fortuna à sua amante, que só poderia usufruir dela após a sua morte. O casamento dele e da esposa ia de mal a pior, mas ele não se importava. Sabia que a mulher queria o divórcio. Ele ia-lhe dar o divórcio, mas a futura ex-esposa não iria levar nem um cêntimo dele!

Entretanto, Cher tinha-lhe telefonado a dizer que fizera uma importante descoberta relativa à Mão Divina e que pretendia reunir-se com ele para falarem sobre o assunto. James era o director do canal GFNews. Ele estava particularmente entusiasmado com as descobertas recentes de Cher e muito curioso para saber se valeria a pena passar-lhe a perna ou não. Sabia que um dos colegas de Cher, o Mitch, também andava a tentar sacar-lhe algumas informações. Cher, que era uma mulher bem experiente, tinha-se fechado em copas.

A jornalista recebera, dias antes, um vídeo que, de acordo com a pessoa que lho remetera, explicaria tudo, se ela conseguisse assistir ao vídeo sem ouvir nada. Confusa, ela seguiu à risca as instruções que alguém lhe tinha enviado, junto com o vídeo. Depois de assistir ao vídeo, Cher percebeu que tinha ali a resposta que todos procuravam! Ela já sabia quem era a Mão Divina! Enquanto isso, a mulher ruiva aproximou-se de James e beijou-o na boca, provocante. Em seguida, perguntou, com voz sedutora:

- Quem é o menino que precisa de levar uma pica, quem é?

- Sou eu! - gemeu James, com voz infantil.

- Assim é, meu querido! Toma lá! - gritou a mulher, espetando uma agulha com um líquido opaco na perna de James, que gritou, assustado!

- Aiii! Fizeste muita força! - gemeu ele.

A mulher riu-se, malevolamente.

- Espera … O que é que tu me fizeste…? Ahhhhhh…!

- Agora que passaste o documento para mim, já não me fazes falta nenhuma, James! Boa viagem, queridinho! - respondeu a mulher com sarcasmo, enquanto retirava a peruca ruiva.

- Você? - questionou James antes de um forte aperto no peito e outro na cabeça o fazerem tombar e cair no chão.

- Oh sim, eu…! Adeusinho! E... Obrigado! - respondeu a mulher, atirando uma foto da Mão Divina a James, retirando o resto do seu disfarce e colocando tudo num saco preto, antes de fechar a porta atrás de si.

Cher decidira ir ao encontro de James na sua mota. Ela tinha uma Harley Davison que usava quando queria espairecer as ideias. Naquele dia, depois da grande descoberta que tinha feito, ela optou pela mota, porque era mais veloz e se alguém por acaso andasse atrás dela, ela teria mais hipóteses de escapar.

Ela e James tinham combinado encontrar-se a meio da estrada entre Grace Falls e San Lynch, numa recta onde poderiam ver tudo à volta a vários quilómetros de distância. Cher achava que aquele local seria o mais seguro para falar com James e passar-lhe uma cópia de tudo. Apesar de ela ser gananciosa, ela não se esquecera de toda a ajuda e apoio que James lhe tinha dado ao longo da carreira. E queria certificar-se que, caso lhe acontecesse alguma coisa, alguém colocaria um ponto final na história da Mão Divina.

Ela pensou em Bianca e em Jules. O vídeo tinha sido totalmente esclarecedor. Preocupada, Cher virava a cara e observava tudo, com receio de estar a ser seguida. No entanto, a viagem decorreu sem problemas até entrar na recta onde marcara o encontro com James. Ao entrar na recta, Cher acelerou. Adorava poder andar a toda a velocidade e sentir o vento a agitar os seus longos cabelos. Tirou o capacete e gritou:


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- Sinto-me viva! Uhhhhuuuu!

Poucos instantes depois, a cabeça de Cher foi arrancada do corpo. A moto ainda se deslocou alguns metros adiante, enquanto a cabeça de Cher rolou pela estrada fora até embater contra um cacto que tinha um desenho da Mão Divina.


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*28 de Julho de 2017*


No dia seguinte, estes acontecimentos foram notícia a nível nacional. Cher e James tinham sido encontrados mortos, em crimes atribuídos à Mão Divina. Cher tinha sido decapitada com um tipo de fio que era invisível a olho nu, ao qual tinha sido aplicado uma cola especial com fibra de vidro.

Quanto a James, o director da GFNews, este tinha sido vítima de um AVC, provocado por uma injecção de vidro esmiuçado. A polícia deixou de ter qualquer controlo sobre a cidade a partir desse dia, que passou a estar sob a alçada do FBI.

Com isso, Shappa e os colegas regressaram a Grace Falls, para alegria de Bianca, que se sentia cada vez pior, apesar das consultas com Joshua, Mariza e das conversas com o Father Simon.

Já o pai de Bianca, Eddie, continuava ausente, mas prometia regressar até ao fim do mês seguinte. Tudo estava a correr conforme o desejado por ele e a equipa que com ele trabalhava.

Agatha regressou no final desse dia com uma comitiva de pessoas. O Presidente Tieman tinha destacado um núcleo de figuras importantes da Defesa Nacional para controlarem o que se passava em Grace Falls. Muitas pessoas civis abandonaram a cidade, que aparentava ficar cada vez mais sombria. Bianca colocou as amigas ao corrente do que havia descoberto até então.


*31 de Julho de 2017*


*Diário de Jules, Página 56*


Foi com grande tristeza que soube, pelas notícias, que o Daniel sofreu um acidente e morreu. Não me acredito nisto! O Daniel!

Como é que é possível?!? Ele só tinha 15 anos! Ele teve uma morte tão estúpida! Foda-se! Quem é que morre assim, colhido por um comboio? Ó pá, já não bastou ter perdido a Christine, agora perdi o Daniel?

Tipo, o Daniel? :’’’’’(((

Fogo, fui mesmo abaixo com isso! :///

Ele morreu sem eu nunca mais ter falado com ele. Nessa noite, quando soube da morte dele, só me apeteceu morrer também. Estava tão triste, o meu peito doeu tanto, que eu não sei como não morri. Queria gritar, mas não tinha forças para tal. A dor sufocava-me. O meu pai deu-me um comprimido qualquer, não sei como, mas aquela merda funcionou. Adormeci em menos de nada!

A partir daí, passei a cortar-me todos os dias. Não queria fazer cortes profundos, porque esses podiam chamar a atenção das outras pessoas e causar-me problemas. Mas fui-me cortando e comecei a tomar Valium às escondidas do meu pai.

Eu só queria ficar sozinho, no meu quarto, sem ver ninguém.

Nem mesmo aquele índio giro, o Matoskah. 

Ele ainda era uma das pessoas que me animava e me fazia sair da cama todos os dias, mas, naqueles dias, nem por ele eu me cativava. A única coisa que me ajudava a suportar as dores eram os comprimidos, os charros, a música e cortar-me…

Quem me dera ter dito ao Daniel que gostava muito dele e o quanto tinha ficado mal e arrependido por não lhe ter falado mais… Sou mesmo um idiota da pior espécie...

Um dia, espero conseguir obter o perdão do Daniel… Nem que seja aonde quer que ele se encontre… Que eu consiga ir ter com ele…


- Ó meu Deus! - exclamou Shappa, ao ler o desabafo em voz alta. - Nunca pensei que ele estivesse tão em baixo! Ainda por cima, o Jules continuava a ter boas notas!

- Ele para arranjar Valium, teve de conseguir receita médica… - comentou Agatha.

- O Théo confessou que deu uns comprimidos ao meu irmão… - comentou Bianca, confusa. - Talvez tenham sido estes, não?

- Foi um erro se o teu amigo o fez, Bianca… O Valium é muito forte para um jovem da idade do teu irmão. Ainda por cima num quadro depressivo como aquele em que ele se encontrava…. Acabou por piorar o estado dele. - retorquiu Shappa, preocupada.

- Vocês já viram a quantidade de coisas que as pessoas escreveram só porque o Jules passou a andar descalço nessa altura? É inconcebível! - resmungou Agatha, mostrando o ecrã do seu tablet a Bianca e Shappa. Vejam só o que aparece no perfil do “Shhh!”

Agatha tinha toda a razão. Dezenas de mensagens anónimas criticavam o facto de Jules ter passado a andar descalço, o facto de Jules parecer só querer dar atenção aos indígenas, Jules ter acabado com Michelle nas vésperas do seu aniversário, entre muitas outras coisas.

Uma chuva de comentários tinha-se sucedido à morte de Jules, com muitos a congratularem-no por ele ter tido coragem para colocar um termo à vida. Parecia que de um momento para o outro, Jules tinha passado de “bestial a besta”, aos olhos das pessoas que comentavam e participavam naquela rede social.  

A situação não era muito melhor no Criss-Cross. Apesar de Jules ter bloqueado os comentários às suas fotos, ainda assim, ele tinha várias mensagens de pessoas conhecidas dele e muitas desconhecidas que eram bem desagradáveis.

Inicialmente, ele ainda respondia com leveza e brincadeira às mensagens de haters. Mas com o passar dos dias e das semanas, passara a ser rude, frio, até que por fim deixou de responder. Chegou mesmo a deixar de abrir as mensagens, fossem de amigos ou não.

Bianca descobriu que o irmão passara a frequentar grupos secretos na rede social Criss-Cross. Entre eles, Jules participava activamente em vários grupos destinados a jovens que pensavam em suicidar-se. Ele manifestava sempre a firme intenção de ajudar outras pessoas, embora por vezes também desabafasse sobre o que se andava a passar com ele. Qual o espanto das três mulheres, quando encontram um grupo secreto e fechado do qual Jules tinha sido excluído após a sua morte intitulado… “Suicide Room”.

- Este é um dos problemas da Internet… - resmungou Shappa. - Não temos total controlo sobre este tipo de coisas. Se o grupo foi criado nas camadas inferiores da rede, a DarkWeb, dificilmente vamos conseguir aceder a este grupo e aos outros. Mas pelo menos temos um ponto de partida. Um bom hacker poderá conseguir aceder…  

- … Ou não… - rematou Agatha, pensativa. - Quem gere estes grupos passa a vida a saltitar de servidores, para evitar ser apanhado…

- Isso é horrível! Quem é que pretende que as pessoas cometam suicídio? - questionou Bianca.

- A Mão Divina! - exclamaram as 3 mulheres, ao mesmo tempo.


[Continua...]

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