Capítulo 20
*7 de Agosto de 2017*
Matoskah acordou naquele dia já quase sem visão. Totalmente descontrolado, gemeu, esperneou e fez das tripas coração para que Wickmunke tivesse compaixão por ele e o colocasse perante a derradeira prova.
Este abraçou-o, deu-lhe um beijo na testa com carinho e falou-lhe num tom de voz que Matoskah escutou no coração:
- Tu tens sido um bravo e corajoso guerreiro. Os meus antepassados e os teus estão tão orgulhosos de ti, meu querido Matoskah! Vou colocar-te perante a tua última prova. Se a venceres, recuperarás todos os teus sentidos e estarás pronto para criar uma nova tribo! Se perderes, perderás bem mais do que os teus sentidos…. Perderás a tua vida também…
- Como assim? O que me vai acontecer? - gesticulou o jovem.
Wickmunke aproximou-se de Matoskah e deu-lhe a beber um líquido, enquanto explicava naquele tom de voz que se fazia ouvir no coração:
- Essa bebida que acabaste de beber é a única cura para o mal que te consome. Trata-se de um veneno de enorme poder, que só se arranja aqui, no Grand Canyon e que o teu corpo terá de vencer! Domina-o e o teu corpo voltará a ficar bom, imune a todo o tipo de venenos que existem neste belo planeta!
Após escutar estas palavras, Matoskah tossiu, sentindo as entranhas dele a pegarem fogo! Ele contorcia-se, atrapalhado! Sentia o seu peito arder, os pulmões a asfixiar, enquanto já não via nada, não ouvia e não conseguia gritar!
Uma série de imagens percorreram-lhe a mente. Lembrou-se de Tatanka, o seu falecido irmão. Recordou-se de como eles eram felizes juntos, de como o irmão lhe tinha ensinado a tocar instrumentos e a falar por gestos.
Recordou-se das brincadeiras íntimas que tinham e que eram tão comuns entre os jovens de tenra idade na tribo deles. Lembrou-se do dia em que se deparou com Tatanka já inerte, após este perder a luta contra um terrível urso, que mais tarde se tornaria o seu espírito animal. O Matoskah-Criança e o Matoskah-Adulto choravam e gritavam, de dor e desespero. As vozes de Wickmunke e de Tatanka falaram a uma só voz:
- “Mitakuye Oyasin, Matoskah!”
Ao escutar aquilo, uma sensação de alívio invadiu o corpo de Matoskah. De repente, Matoskah estava muito bem vestido, com um fato de cerimónia, na companhia de Wickmunke. Estavam no que parecia ser um salão de festas, rodeados de pessoas que nenhum deles conhecia e que não pareciam aperceber-se da presença deles.
- Onde estamos? O que estamos a fazer aqui? Eu não estava a fazer uma prova? - questionou Matoskah.
- Estamos a celebrar a tua vitória! - sussurrou Wickmunke, abraçando-se a Matoskah.
De repente, o cenário mudou novamente.
Matoskah estava no velho armazém onde tinha criado um ninho de amor com Jules. Aquela dor agonizante voltara ao seu peito. A dor daquele fatídico dia…
- “Ó Jules! O que estás a fazer?” - gritou Matoskah, desesperado, aproximando-se de Jules.
- “Não te aproximes mais, Matoskah!“ - vociferou Jules. - “Eu não quero conspurcar-te com o meu pecado! Tu não mereces isso!”
Tudo começou a arder instantes depois, entre os berros e gritos de Matoskah. Jules declarava, com ar louco:
- “A morte do eu… Esta sim…. É a liberdade absoluta! Obrigado, meu amor! Obrigado por todos os belos momentos que passamos juntos!”
- Jules! Nããããããooooo!
Jules tinha-se atirado do prédio! Matoskah observava tudo, totalmente desesperado!
De repente, o cenário mudava de novo.
Matoskah via-se a si mesmo, deitado numa cama do hospital de Grace Falls. Um médico observava e mexia no seu corpo nu e excitava-se com isso, estimulando o seu próprio corpo.
Não tardou para ver o mesmo médico a fazer o mesmo ao seu irmão Takoda! Um misto de raiva e indignação rugiram dentro de Matoskah. Uma raiva crescente vibrava em cada célula dele, a ponto de explodir!
O cenário mudou novamente!
Jules aparecia no seu próprio funeral, vestido com um lindo fato de cerimónia, muito semelhante ao que Matoskah tinha usado no baile onde dançara com Wickmunke. Tatanka aparecia também, a dançar com várias raparigas e rapazes, enquanto Jules dançava com um rapaz que Matoskah não conhecia. Indignado, Matoskah aproximou-se de Jules e preparava-se para falar, quando Tatanka o interpelou:
- Estás prestes a superar o teste! Acorda, Matoskah! Vive a tua vida e sê o mais feliz que puderes ser! Por favor, torna o nosso sonho uma realidade!
Uma onda de amor e gratidão explodiu no corpo de Matoskah. Este sentiu o seu corpo a flutuar, mais leve que o ar! De repente, um clarão de luz de sete cores iluminou-o e desceu sobre ele, entrando pela cabeça e descendo sobre todo o seu corpo, preenchendo-o, até aos pés. Assim que todo o seu corpo foi iluminado pela chama arco-íris, Matoskah suspirou profundamente e abriu os olhos, lentamente.
A primeira coisa que ele se apercebeu é que tudo à sua volta estava mais nítido e vívido do que alguma vez se recordava! Emocionado, ele deu um berro de alegria e para sua surpresa, apercebeu-se que não só tinha recuperado a sua voz, como também a sua audição!
De imediato, Matoskah começou a gritar e a urrar feliz! Tinha superado as provas que os Grandes Espíritos tinham criado para ele!
Wickmunke apareceu de repente, com ar de profunda reverência:
- Meu querido e amado Matoskah! Quanta honra me deste hoje, ao ver descer sobre ti a bênção divina! Não és apenas o mais jovem e recente líder de uma nova tribo, como também foste totalmente agraciado pelos Grandes Espíritos!
- Nunca o teria conseguido sem a tua preciosa ajuda, querido Wickmunke! Obrigado! - rematou Matoskah, abraçando-o com carinho.
Os dois deixaram-se estar assim durante algum tempo. Matoskah sentia que tinha renascido. O seu coração estava leve, como sempre estivera, excepto durante a fase em que Jules tinha morrido. Matoskah estava a partilhar isso mesmo com Wickmunke, quando uma visão de Jules lhe entrou pelos olhos dentro! Jules aparecia envolto numa neblina esquisita e parecia assustado:
- “Matoskah! A minha irmã Bianca corre perigo! Por favor, ajuda-a! Por favor, meu amigo! Ajuda a Bianca!”
A visão desvaneceu-se tão rápido quando irrompera. Matoskah comentou de imediato aquela visão com Wickmunke que, preocupado, tratou logo de enviar um alerta para a tribo.
- Está descansado, nobre Jules! A ajuda já vai a caminho! - gritou ele para os céus, enquanto uma águia voava bem alto nos céus, em direcção a nordeste.
*Entretanto, em Grace Falls…*
Bianca prosseguia a leitura do diário, de forma ávida. Ela sentia que a qualquer momento encontraria a pista que lhe faltava para desvendar o mistério. Para consternação de Bianca, Jules limitara-se a desenhar estados de espírito que ia sentindo e algumas das aventuras que tivera graças ao aplicativo Finder nas muitas páginas seguintes, o que lhe causou alguma estranheza.
De igual forma, a escrita de Jules tornara-se mais vaga e errática. Bianca apercebeu-se que o irmão já devia estar sobre os efeitos da intensa medicação que os médicos lhe haviam prescrito e que tal lhe estaria a afectar a capacidade de se concentrar a escrever como o tinha feito até então. Ainda assim, Bianca já tinha decidido ler o diário até ao fim. Estava com esperanças de encontrar ali as respostas que procurava.
*Diário de Jules, Página 345*
“Querido diário,
Já perdi a conta ao número de vezes que fechei e reabri o Finder. Aquilo é, como eu imaginava, um verdadeiro talho, uma verdadeira montra de loja. Andam todos sempre à procura de “carne fresca”. Acho que nunca vi homens tão bonitos e tão vazios ao mesmo tempo, concentrados num só lugar e em tão grande quantidade.
De igual forma, eu nunca fui tão elogiado e “apaparicado” como sou ali.
Apesar de me sentir usado por causa disso, a verdade é que no fundo, bem lá no fundo, a ideia de ser objecto de desejo de tantos homens, de diferentes idades, estratos sociais e níveis de cultura, deixa-me feliz e orgulhoso.
Afinal, hoje em dia, praticamente ninguém lá no liceu me dirige a palavra.
Lá no liceu dizem que eu e o Matoskah andamos sempre juntos. Lá está - dizem ou pensam - porque essa é que é a verdade - e foi graças a isso que eles deixaram simplesmente de me falar. Mas na verdade, eu e o Matoskah a maior parte do tempo só estamos juntos nas aulas e nos intervalos do liceu. No resto do tempo, o Matoskah está ocupado com outras coisas e ainda bem, porque eu também preciso do meu espaço.
Passei a ter como companhia as sessões com a Mariza, o Joshua e o Father Simon. Na verdade, existem momentos em que me sinto mais feliz com eles do que quando estou com o Matoskah.
Ele agora está mais calmo e tranquilo e não seria justo dizer que as coisas entre nós não melhoraram. Houve uma evolução e realmente… Nós estamos bem melhores hoje, do que estivemos até agora. Ele tem estado muito ocupado com coisas da tribo dele. Por vezes, até tem de faltar à escola e tudo. No entanto, ele trata-me com muita gentileza e carinho e os amigos dele também. Estou a gostar bastante deste lado mais adulto e responsável que ele me tem dado a conhecer.
Eu é que continuo o idiota, medroso e parvo de sempre. :///
Já faz algum tempo que abri o meu coração à Mariza, depois ao Joshua e por fim ao Father Simon. Apercebi-me que carregava um fardo demasiado pesado às costas. Não tive coragem para dizer por quem estava - e estou - apaixonado. Isso é algo que nem eu estou certo de poder afirmar com clareza.
Afinal, só há bem pouco tempo é que compreendi o que sentia verdadeiramente. O que mais me magoa no relacionamento com o Matoskah é que ele tem tentado fazer com que as coisas dêem certo. Eu sei que ele vê a relação como algo mais simbólico do que eu. Eu é que tenho sido o mau da fita, porque finalmente me apercebi de uma coisa muito importante.
Eu tentei encaixar os meus sentimentos, tentei transferir os meus sentimentos que nutro pelo Daniel para o Matoskah, mas tal não foi possível. Luto há vários meses para me apaixonar verdadeiramente pelo Matoskah, mas acho que tudo não passou de uma doce ilusão da minha cabeça.
Gosto dele, sim, mas num misto de sentimentos. Vejo nele um amigo próximo, um companheiro de viagem, um irmão, um amante, sei lá… Se o Daniel surgisse agora à minha frente e me dessem a escolher… Eu escolheria o Daniel, sem sombra de dúvidas.”
Bianca, surpreendida com aquela confissão de Jules, fechou o diário com força. Ao fazê-lo, uma fotografia saltou do diário para o chão. Intrigada, Bianca pegou na fotografia. Era um rapaz adolescente, de cabelos ruivos. Na parte detrás da fotografia, estava escrito:
“Para o
Jules,
Envio-te esta
fotografia mais atrevida como recordação por me teres dado a oportunidade de
nos conhecermos!
Beijos,
Com muitas
saudades tuas,
Shade”
Intrigada com a fotografia, Bianca procurou o local do diário de onde esta se teria desprendido. Não tardou a encontrar o lugar:
*Diário de Jules, Página 370*
“Querido diário,
A vida é bela quando se ama! Pelo menos é o que diz a Maurice! E acho que ela tem toda a razão!
Pois bem, já faz algum tempo que eu não escrevo por aqui! Aposto que até tu tens tido saudades minhas, não é?
Deixa lá, que é por um bom motivo!
As minhas preces foram finalmente ouvidas! Aleluia! Deus existe! \^o^/
Tudo começou após o meu 6º ou 7º retorno ao Finder.
Yah, eu estou sempre a dizer que vou largar aquilo e não sei que mais, mas pronto! A verdade é que nem toda a gente quer apenas sexo. Na verdade, já conheci alguns rapazes pelo Finder que neste momento considero amigos.
De vez em quando lá temos alguma conversa mais escaldante, mas temos consciência que é para dar um pouco de sal às nossas vidas. Todos temos a consciência - e ainda bem - de que procuramos algo diferente, mas que podemos dar-nos bem e sermos amigos.
Bom, tudo isso deixou-me feliz!
No entanto, o que realmente foi extraordinário, foi a noite em que um rapaz me enviou uma mensagem. Uma mensagem muito curta, onde dizia apenas:
“Olá Jules, boa noite! Gostei da simplicidade do teu perfil. Tal como tu, estou por aqui para conhecer e fazer novos amigos, que quem sabe, com o tempo, podem tornar-se algo mais. Abraços.”
Eu fiquei intrigado e fui “cuscar” o perfil dele. Achei piada a várias coisas: ele é do mesmo signo que eu, temos a mesma idade, procura as mesmas coisas que eu e tem um ponto que eu adoro num homem: um ar misterioso.
Mandei-lhe mensagem a agradecer e ele passados alguns minutos respondeu.
Começamos a conversar e não sei explicar-te como, nasceu entre nós uma empatia imediata. Eu parecia que conseguia ler-lhe os pensamentos e ele a mim! Trocamos fotografias e qual o meu espanto quando vi o rapaz bonito que tinha a falar comigo!
Fiquei intrigado com o que levaria um rapaz bonito como ele a falar comigo. Ele explicou-me que me tinha considerado bonito, inteligente e sensível e que tinha sentido vontade de me conhecer. E eu concordei, dizendo-lhe que isso era o que eu estava a sentir com ele.
As horas passaram a correr. Depressa trocamos contactos e passamos a teclar pelos telemóveis. Eu queria ainda escutar a voz dele antes de ir dormir, mas ele disse que isso ficaria para uma próxima vez, a fim de mantermos algum suspense e mistério no ar. Ainda conversamos sobre imensas coisas e quando demos por ela, o dia já tinha raiado!
Nessa manhã eu não fui às aulas. Estava demasiado entusiasmado por ter conhecido o Shade. Até nisso ele é misterioso, não achas? Adorei o nome. Shade. Assenta-lhe que nem uma luva…”
*Diário do Jules, Página 379*
“Já converso com o Shade há algum tempo e digo-te: nunca me senti tão animado e feliz em conversar com um rapaz!
Na verdade…
Eu fiz asneira outra vez. ;P
Eu atrevi-me e hoje convidei-o para vir cá a casa…
Este rapaz… Eu não te sei explicar como é que tudo se passou entre nós. Eu sei que não consegui esquecer o Daniel. Sei que ainda mantenho algo com o Matoskah. No entanto, com o Shade, tudo parece ficar mais fácil. Até nem me tenho cortado, vê lá tu! O Shade mostrou-me alguns cortes que já fez, pois ele também se corta.
Infelizmente, eu sou um cobarde. Ainda não contei ao Shade que tenho o Matoskah, nem que ainda gosto de um rapaz que morreu faz já algum tempo. :/
Na verdade, infelizmente, a vida dele é bem mais difícil que a minha. O Shade foi adoptado em bebé. Disse-me que a mãe verdadeira dele o abandonou à nascença! Mas que grande cabra! Como é que alguém tem coragem para abandonar um rapaz como o Shade?
Ele depois viveu numa família disfuncional. Os tios abusaram dele de diversas maneiras, incluindo sexualmente, ainda ele era pequeno. Quando a mãe adoptiva morreu, o Shade tinha 10 anos. Ele abandonou o lar onde vivia e passou a viver nas ruas, lá em Fargo, uma cidade na Dakota do Norte.
Fiquei muito triste ao saber da vida difícil que ele já teve, mas ao mesmo tempo percebi que estava perante um lutador e um sobrevivente. Apesar de ele ainda viver nas ruas, o Shade parece-me ser um rapaz sincero e honesto, que apenas quer o que todos ou a maior parte de nós quer - ser amado e claro, arranjar um pouco de estabilidade emocional e financeira na vida.
O Shade disse-me que raramente fala da sua vida pessoal, porque tem medo de que as pessoas o desconsiderem por ser um rapaz que vive nas ruas. No entanto, ele disse-me que comigo sente que pode ser um livro aberto. Que pode confiar em mim. Eu gostei que ele confiasse em mim e decidi abrir-me com ele. Contei-lhe das minhas dificuldades em ser gay, ao que ele me contou que se eu quisesse, eu e ele poderíamos experimentar algo íntimo que talvez eu gostasse, quando nos conhecêssemos.
Ele sabia que estava a lançar o isco certo. Deixou-me com a pulga atrás da orelha.
Eu sabia que era um risco, que poderia ser muito bem uma armadilha e o rapaz que conversava comigo na verdade ser outra pessoa ou estar com más intenções. No entanto, eu senti dentro de mim que ele estava a ser sincero.
E eu, na verdade, já suspirava por ele.
Quando me masturbava, imaginava-me a ter algo com o Shade. Ele fazia-me sentir confortável e mesmo quando falávamos de assuntos sobre a nossa intimidade - não que fosse um tema recorrente - ele tinha sempre uma resposta que me fazia sorrir e a deixar-me a sentir bem. Com ele, apercebi-me de que os meus sentimentos de culpa não surgiam com tanta frequência, talvez porque ainda não nos tínhamos conhecido.
Combinamos as coisas para o Shade vir cá a casa hoje.
Dispensei a Maurice e fui buscá-lo ao comboio que chega à hora de almoço. O Shade foi o último passageiro a sair do comboio, com ar desconfiado. Olhou para todo o lado e quando me viu, o seu rosto espelhou uma surpresa, tal como eu: estávamos vestidos de forma muito semelhante!
Rimo-nos com a coincidência e aproximamo-nos um do outro, trocando um forte e terno abraço. Estivemos abraçados durante algum tempo, como se fôssemos velhos conhecidos. Eu senti que o Tempo tinha parado naquele momento. Que o Mundo era só eu e o Shade. O abraço dele era quente e os olhos deles, brilhantes como duas safiras, estavam emocionados.”
- Ainda não me acredito que estamos mesmo a conhecer-nos. Muito obrigado, Jules! - comentou Shade, com uma voz profunda.
- Ora essa, tu já devias saber que eu queria muito conhecer-te e estar contigo! - respondi.
- Sabes Jules? Eu estou habituado a não acreditar em nada que me contam. É difícil imaginar algo de bom a acontecer na minha vida…
Eu dei outro abraço ao Shade e convidei-o a montar a minha mota. Partimos juntos, com ele a colocar os seus braços ao meu redor, enquanto sorríamos um para o outro. Levei-o a conhecer alguns locais da cidade e arredores, de mota.
Como imaginava que ele estaria com fome, não tardamos a vir para casa, onde convidei o Shade a tomar um bom banho, a vestir umas roupas que comprei para ele enquanto eu lhe preparava uma boa e reconfortante refeição.
O Shade chorou, emocionado, ao ver tudo o que eu tinha preparado para ele. Acho que até aquele momento, ele estava à espera de conhecer um menino rico, que queria usá-lo para se satisfazer ou satisfazer algum capricho de menino rico. Quando percebeu que eu estava a ser genuíno, ele abraçou-me e convidou-me para tomar banho com ele.
- Não te quero perder de vista, Jules. Além disso, assim ficas mais seguro. Saberás que não venho aqui para te roubar nada…
- O bem mais preciso já me roubaste, seu maroto! - respondi eu. - Roubaste-me o coração com essa tua maneira de ser tão bonita…
O Shade ficou sem palavras. À medida que nos íamos despindo, íamos comparando os nossos corpos. Ele é mesmo lindo! Tem um corpo espectacular, muito semelhante ao meu! Até os pêlos deles são ruivos, como os meus! Contemplamos o corpo do outro durante algum tempo.
A dada altura, o Shade disse que gostava de me mostrar o que me tinha falado.
Eu aceitei.
Não sei, com ele, as coisas fluíam com uma naturalidade extraordinária.
Já no banho, ele começou a tocar no meu corpo e a beijar-me, sussurrando palavras doces entre beijos e lambidelas. Explicou-me que queria fazer gouinage comigo.
Eu disse-lhe que desconhecia o que era gouinage. Ele riu-se, divertido e com simplicidade, explicou:
- O gouinage é um termo relativamente recente, mas que certamente muito boa gente usa e pratica, embora não conheça o termo. Trata-se de uma palavra francesa que significa “lesbianismo”. No entanto, o gouinage é, na verdade, uma forma de fazer sexo sem penetração. Estimulam-se os corpos de várias formas e sentidos, com o objectivo de se proporcionar o maior prazer possível ao nosso parceiro, sem ter de envolver a penetração.
- Mas isso não conta como o sexo preliminar, Shade? Não é isso que as pessoas fazem antes da penetração?
O Shade sorriu e continuou:
- Nesta prática, mais homoerótica, estimulam-se todos os sentidos, com vista a obtermos prazer sem necessitarmos de penetrar ou sermos penetrados. Como já percebi que tu não te sentes confortável com a penetração e eu também não, pelos motivos que te falei, pensei que podia ser algo interessante e bonito de desenvolvermos entre nós… Mas se não quiseres fazer nada, não tem problema. Ser teu amigo, por agora, deixa-me imensamente feliz. Mas confesso que gostava de me tornar algo mais do que um amigo para ti, Jules...
Ó pá, quando o Shade me disse aquilo, com aquele olhar, com aquele sorriso misterioso, eu senti que ia rebentar! Beijei-o com paixão! Amei-o naquele momento como não me recordo de ter amado alguém!
Pensei no que tivera com o Daniel. Pensei no que tinha com o Matoskah. Nenhum deles me conhecia tão bem como o Shade já me conhecia. As mãos dele exploravam o meu corpo, de uma forma tão subtil!
Cedo entendi o que ele queria dizer com outras formas de prazer. A maneira como fizemos amor hoje demonstrou isso mesmo. Senti um prazer enorme em estar ali, envolvido com ele, primeiro no banho, depois na cama, depois na cozinha, enquanto comíamos, depois de novo no banho, para nos lavarmos…
Até que por fim, ambos desejamos o mesmo - voltamos para aqui, para o meu quarto, onde fizemos amor e fomos até ao fim.
Foi uma experiência maravilhosa.
Eu quase não senti dor nenhuma e o Shade garantiu-me que também não sentiu nada, para além do prazer! Fiquei muito honrado por saber que ele a dada altura quis que eu o penetrasse e ele ficou feliz por saber que eu queria que ele me penetrasse a mim.
Felizmente, eu tinha uma caixa de preservativos, porque imaginava que algo pudesse acontecer hoje. Ele riu-se quando lhe contei isso, quando ele já se estava a vestir para se ir embora. Entre beijos e carinhos, disse-me que já havia noites, desde a noite em que tínhamos trocado a primeira mensagem, que desejava que esta tarde acontecesse. Estava eu deitado na cama ainda despido e ele a acabar de se vestir, quando ele me abraçou, beijou e me sussurrou:
- Tudo foi ainda melhor do que eu imaginava… Muito obrigado, meu querido Jules!
Shade pegou no preservativo que eu tinha usado nele e dando-lhe um nó, disse-me, com voz ternurenta:
- Vou guardar isto, de recordação.
- Idiota! És mesmo parvo! - respondi eu, rindo-me do ar apaixonado que Shade me apresentava.
- Dizem que é isto que o amor causa nas mentes dos mais nobres e puros de coração. Estou feliz por te ter conhecido, Jules! Obrigado!
Eu fiquei nas nuvens com o Shade! Como é que eu podia resistir a um rapaz tão fofo como ele?
Bianca estava estupefacta com as revelações do irmão! Mais ainda ao ver que o tal rapaz era bom rapaz e que parecia gostar verdadeiramente de Jules! Curiosa, prosseguiu com a leitura, decidida a ir até ao fim do diário.
*Diário de Jules, Página 400*
Tenho evitado falar com o Shade.
Descobri algo e não sei o que fazer.
Ele tem mandado imensas mensagens e recados, preocupado!
O Shade quer assumir algo comigo.
Finalmente, ganhei coragem e fui ter com ele a Fargo, na Dakota do Norte. Combinei com ele um fim-de-semana prolongado e disse à Maurice que ia para casa de uns amigos e que lá não teria rede.
Chegado a Fargo, fomos para um hotel que eu tinha reservado para nós.
Eu precisava mesmo muito de falar com o Shade, mas ainda não sabia como iria ele reagir ao que eu tinha para lhe dizer.
- Olha Shade, apesar de me sentir feliz como nunca me senti com ninguém, eu tenho absoluta consciência de que gosto de um rapaz que já morreu e namoro com outro rapaz que, bem, nem sei bem o que é que temos ao certo.
O Shade ficou bastante surpreendido com a revelação e durante algum tempo não me disse nada. Quando finalmente falou, levantou a cabeça e olhou-me com aqueles lindos olhos brilhantes e disse-me, na sua voz serena e profunda:
- Eu também nunca senti nada assim por ninguém como sinto por ti, Jules.
Fiquei a pensar no que havia de lhe dizer em resposta a isso. Eu tinha outra bomba para lançar ao Shade, mas não estava certo de estar preparado para arruinar algo tão bonito como o que já vivíamos.
Comecei por desabafar em como me sentia triste e inseguro no relacionamento com o Matoskah. De facto, agora que ele estava mais empenhado do que nunca nas actividades da tribo com vista a vir a ser um líder no futuro, eu e ele mal nos víamos ultimamente. Quando nos víamos, era certo e sabido que Matoskah queria sexo, mas eu já me tinha habituado ao tipo de sexo que o Shade me fizera descobrir, o que era estranho para o Matoskah, que era mais “selvagem” nesse aspecto.
- Tens-me a mim. Eu sei que não sou perfeito, mas eu posso cuidar de ti, Jules! Não te peço nada em troca, nada que, acho eu, não me possas dar…
- Isto vai soar estranho… - declarei. - Mas eu tenho algo muito importante para te dizer, Shade. Eu tenho pensado muitos nas inúmeras coincidências que existem entre nós. Vai daí que…
- Vais dizer-me aquilo que eu já sei…
- Já sabes? Como?
- Vais dizer-me que eu andei a fazer-te stalking e que achas que eu só me estou a querer aproveitar de ti, com vista a sacar-te dinheiro, quem sabe no futuro a fazer chantagem contigo! E claro, vieste até cá para acabares tudo comigo e deixarmos de falar!
Fiquei chocadíssimo com a expressão que lhe irrompeu no rosto. Shade estava aterrorizado com a ideia de me perder! E eu também estava, na verdade.
- Não, Shade! Não é nada disso! Bom… Eu não sei como vou dizer-te isto, mas…
- Mas…?
- Shade… Eu peguei no preservativo que usamos da primeira vez que estivemos juntos e mandei fazer umas análises. Desde o primeiro momento em que te vi que eu achei que eras alguém bem especial. O resultado das análises chegou há algum tempo. Bom… Aqui vai… Shade… Eu e tu somos irmãos…. Somos irmãos gémeos falsos28…
- O quê? - exclamou Shade, com uma expressão totalmente abismada. - Não, não pode ser! É verdade que somos bastante parecidos, até adivinhámos às vezes o que o outro está a pensar e assim, mas isso não pode ser verdade!
Abracei o Shade com muito carinho.
Ele começou a chorar.
Eu comecei a chorar.
Beijamo-nos intensamente. Olhei-o nos olhos. Vi neles o que o meu coração sentia também.
Aquela informação, felizmente, não iria mudar nada entre nós. Eu e o Shade queríamos ficar juntos e não seria aquilo que nos iria impedir. Eu continuava a gostar do Daniel, mas ele já estava morto. Ainda nutria algo pelo Matoskah, mas nem eu sabia bem o quê. Só me restava pedir a Deus perdão pelos meus pecados, quando chegasse a hora.”
Completamente horrorizada, Bianca levantou a cabeça do diário, lívida como cal. Ainda em choque, ela dirigiu-se ao seu quarto, para verificar algo no portátil do seu irmão.
Ao abrir o computador, Bianca procurou pela pasta misteriosa. Ao deparar-se com ela, escreveu:
“SHADE”
A palavra-passe estava correcta e finalmente Bianca acedeu à pasta secreta que estava protegida por palavra-passe no portátil de Jules! Na pasta, estavam conteúdos diversos:
Fotografias que Jules tirara com Matoskah, Takoda e os restantes amigos;
Fotografias com Shade;
Músicas que Jules tinha composto;
Músicas que Jules tinha recebido, como dedicatórias de Shade;
Havia ainda um vídeo, que tinha como legenda:
“Ler a carta primeiro e seguir as instruções à risca.
Só depois é que deves visualizar o vídeo.”
A carta de Jules era dirigida a Shade.
“Querido Shade,
Meu amado, minha luz, minha perdição.
Sinto-me na pior das tempestades, na mais negra das noites sem rumo e sem fim.
Ainda me sinto doente depois do que aconteceu com o doutor Michael. Ainda bem que pude contar contigo para me tirares da casa daquele estupor. Li sobre os efeitos da droga que descobrimos que ele colocou na bebida. Ele é mesmo um sacana e espero que seja feita justiça!
Sinto-me pior do que lixo por me ter envolvido com ele. Não sei como me deixei levar pela cantiga dele. Não merecias que eu te fizesse isso, bem como o Matoskah. Fui um estúpido e um puto mimado, mesmo.
Não te mereço, nem mereço o Matoskah!
Vocês foram as maiores alegrias da minha vida. Amo-te como nunca amei ninguém, apesar de continuar a amar o Daniel.
Ele foi, é e será para sempre o meu amor inventado…
Eu tenho plena consciência de que corro perigo de vida, como já te contei...
Já sei quem é a Mão Divina. Foi uma surpresa muito inesperada para mim. Confirmei tudo o que suspeitava hoje. Bolas, foi um verdadeiro choque. Sei que me prometeste ajudar, em nome do que nutres por mim.
Se me acontecer alguma coisa, querido Shade, por causa do que estou a fazer agora, tens aqui a prova final em vídeo, sobre quem é a verdadeira Mão Divina e como é que age.
Consegui gravar este vídeo com uma microcâmara escondida do meu pai.
LOL.
Desculpa.
Ele não é meu pai.
Nem é teu.
Coitado, o Eddie cuidou de mim sem saber que a nossa mãe o traiu.
Enfim.
Ajustarei ou ajustaremos contas com ela, um dia. Estou muito triste, decepcionado e revoltado por ela te ter dado para adopção e ter-nos impedido de termos sido felizes juntos!
Quem sabe não tivéssemos chegado a este ponto, se ela não o tivesse feito!
Outra coisa, meu amor.
Não podes ouvir o vídeo, senão cais na armadilha da Mão Divina! Lê nos lábios! Repito: lê nos lábios! Só assim não cairás na armadilha! Tem cuidado contigo!
Perdoa-me se algo correr mal! Perdoa-me por ser um tolo egoísta, que julga que vai fazer a diferença, aceitando o destino implacável que escolheram para mim!
Já transferi todo o meu dinheiro para uma conta secreta, que abri em teu nome e no meu. Mandei-te os detalhes da conta por sms. Se me acontecer algo, querido Shade, quero que saibas que fui infinitamente mais feliz ao teu lado do que alguma vez esperei ou sequer imaginei vir a ser!
Obrigado, do fundo do meu coração, por cuidares de mim e me fazeres sentir o rapaz mais amado do mundo. Se me acontecer algo, espero que tu possas vingar-me. Em nome do amor que nos une, imploro-te que se me acontecer algo, tu dês cabo desta maldita Mão Divina!
Não permitas que a Mão Divina roube mais vidas….
Imagina quantas pessoas poderiam ter sido felizes, como nós somos, se não fosse a Mão Divina…?
Beijos eternos com muito amor,
Do teu,
Sempre,
Jules
P.S. - Se alguma vez te cruzares com o Matoskah, por favor, pede-lhe perdão por mim. Não tive coragem para o fazer. Fui um cabrão egoísta, vou mesmo pagar o preço da fama que ganhei…
Gostava de te pedir o favor de doares algum dinheiro da nossa conta para que a tribo dele possa adquirir alguns bens e ferramentas, pode ser? Não levas a mal? Vais gostar muito deles, são pessoas que te podem ajudar a encontrar um novo rumo na vida, acredita!”
Bianca, movida pela curiosidade, preparava-se para clicar no vídeo, desligando o som. Ao ouvir Maurice a dar um grito na cozinha, ela pegou no portátil, colocou-o numa mochila e desceu as escadas a correr.
Um cheiro intenso a gás atingiu-lhe as narinas. Apercebendo-se do perigo iminente, Bianca hesitou entre procurar Maurice e fugir de casa! O instinto de sobrevivência falou mais alto!
Afastando-se sem nunca olhar para trás, Bianca foi atirada para o chão, com violência, poucos metros depois, devido ao impacto de uma explosão de gás que destruiu completamente a sua casa!
Um carro parou ao lado de Bianca e um vulto abriu a porta do pendura.
- Entra aqui, Bianca! Corres perigo! Depressa!
Sem pensar duas vezes, totalmente chocada com o que acabara de acontecer, Bianca entra no carro e este parte a toda a velocidade, enquanto dois vultos fugiam a correr, nas imediações do que restava da casa da família Sullivan.
Nota do Autor:
28 - Jules explica
ao irmão que eles são irmãos gémeos falsos. Numa linguagem mais técnica, o
termo correcto é “gémeos dizigóticos” ou “gémeos fraternos”.
[Continua...]
adorei, parabéns
ResponderEliminarÉ um tema bem delicado este, mas na vida real acontece às vezes, até entre pais e filhos que foram separados à nascença e só se conhecem em adultos e como desconhecem as ligações, eventualmente apaixonam-se. Tema que daria pano para mangas.
Eliminar