Escrito nas Entrelinhas: Parte 3 ~ Capítulo 53

Capítulo 53 

Os dois pombinhos deixaram-se estar assim, naquele clima de paz e romance durante mais algum tempo. Ao escutar as vozes dos amigos a aproximarem-se da sua cabana, o encanto quebrou-se. Os dois homens levantaram-se e saíram da cabana. Shade e os restantes chegaram até eles. Shade estava deveras impressionado com a aldeia e elogiou Matoskah, que prontamente lhe agradeceu. Com um sorriso, perguntou:

- Vocês os dois devem estar cansados da viagem! O vosso dia já vai longo, certo? Vamos comer algo?

Sem esperar resposta, Matoskah deu as mãos a Mikel, perante um Shade cada vez mais enciumado pela cumplicidade crescente entre aqueles dois. Takoda e os amigos seguiram Matoskah até uma clareira onde Agatha, Shappa e Chayton preparavam um banquete, com a ajuda de outros membros da tribo.

- Espero que estejam com fome! Sentem-se à mesa! - convidou Shappa, com ar feliz.

O estômago de Shade roncou. Todos se riram, bem-dispostos.

- Desculpem! Já não me lembro quando comi da última vez! - retorquiu ele,  envergonhado.

O Grande Chefe Heȟáka Sápa convidou-o a sentar-se ao seu lado. Surpreso, mas feliz, Shade aceitou. Mikel sentou-se ao lado dele e trocaram um sorriso terno. Shade sentiu a fera que se agitava dentro dele a acalmar-se imediatamente. Mikel tinha aquele efeito nas pessoas. 

O Chefe Matoskah, Takoda, Baya Ainila e os restantes foram-se sentando ao redor da enorme mesa de madeira de carvalho, à medida que iam passando pratos, comidas, frutas e bebidas uns aos outros.  

A conversa fluía de forma suave e pacífica. O Grande Chefe Heȟáka Sápa começou a contar histórias da sua juventude e das batalhas que travou para defender o seu Povo. Os olhos de Shade brilhavam de admiração e respeito pelo Grande Chefe. 

O Chefe Matoskah, por sua vez, falou das dificuldades que eles estavam a enfrentar na Reserva Ameríndia e os projectos em que estavam a trabalhar para melhorar a situação. Baya Ainila, através de gestos, partilhou com entusiasmo e visível orgulho, a sua primeira aventura enquanto caçador.

Takoda, embora fosse ainda uma criança, já estava a ser treinado e ensinado para ocupar o lugar de Xamã da Tribo dos Guerreiros Arco-Íris. Ele permanecia em silêncio, enquanto observava com atenção cada membro do grupo e sorria, feliz. Shade podia sentir a sua presença tranquilizadora.

Depois do jantar, o Grande Chefe Heȟáka Sápa convidou Shade para caminhar com ele na floresta. Shade aceitou, animado por passar mais tempo com o Grande Chefe. Enquanto caminhavam, Heȟáka Sápa partilhou mais histórias sobre a história da tribo que ele fundara outrora e como eles haviam sobrevivido a tantos desafios ao longo dos anos. Shade ficou impressionado com a resiliência e a sabedoria do Grande Chefe.

Quando regressaram ao acampamento, Matoskah estava à espera deles. Ele ofereceu uma bebida tradicional a Shade e explicou-lhe que era feita com plantas medicinais que ajudavam a acalmar a mente e o corpo. Depois de beber a bebida, Shade sentiu-se completamente relaxado. Foi nesse momento que todos se sentaram à volta de uma grande fogueira, enquanto Chayton entregava um copo com outra bebida a todos e brindaram a Mikel e a Shade. Depois de beberem, Mikel levantou-se e anunciou:

- Eu e o Shade queremos agradecer-vos pela vossa amabilidade e hospitalidade! Preparamos uma surpresa para vocês! Esperemos que gostem!

Shade, com um grande sorriso, correu para a cabana que Chayton lhe havia destinado. Lá, pegou numa viola que tinha trazido e juntou-se a Mikel. Os ameríndios olharam para eles, expectantes. A um sinal combinado, os dois amigos começaram a cantar!

[Shade & Mikel]

 

No rancho fundo
Bem pra lá do fim do mundo
Onde a dor e a saudade
Contam coisas da cidade

No rancho fundo
De olhar triste e profundo
Um moreno canta as mágoas
Tendo os olhos rasos d'água

Pobre moreno
Que de noite no sereno
Espera a lua no terreiro
Tendo um cigarro por companheiro

Sem um aceno
Ele pega na viola
E a lua por esmola
Vem pro quintal desse moreno…

 

Takoda e Baya Ainila levantaram-se. Com um olhar cúmplice, deram as mãos e começaram a dançar! Todos se emocionaram com os gesto dos pequenos! Chayton e Shappa, Agatha e Paytah²⁷ - um belo e másculo guerreiro - Cetan Nagin e Siha Sápa, Maȟpyua Lúta e Wakinyan, juntaram-se-lhes, felizes. Não tardou para que os restantes membros da tribo, com a excepção do Grande Chefe Heȟáka Sápa e do Chefe Matoskah, que contemplava Mikel com um olhar apaixonado, se levantassem e dançassem, ao som da melodia!  

 

[Mikel & Shade]

 

No rancho fundo
Bem pra lá do fim do mundo
Nunca mais houve alegria
Nem de noite, nem de dia

Os arvoredos
Já não contam mais segredos
E a última palmeira
Já morreu na cordilheira

Os passarinhos
Hibernaram-se nos ninhos
De tão triste esta tristeza
Enche de trevas a natureza

Tudo porquê?
Só por causa do moreno
Que era grande, hoje é pequeno
Pra uma casa de sapê!

 

Matoskah acabou por levantar-se e, aproximando-se de Mikel, estendeu-lhe as mãos, convidando-o a dançar com ele, completamente apaixonado. Mikel, feliz, aceitou o convite! Enquanto cantava e dançava, mirava Matoskah, olhos nos olhos, com uma expressão que dispensava legendas.

 

[Shade & Mikel]

   

Se Deus soubesse
Da tristeza lá na serra
Mandaria lá pra cima
Todo o amor que há na Terra

Porque o moreno
Vive louco de saudade
Só por causa do veneno
Das mulheres da cidade

Ele que era
O cantor da primavera
E que fez do rancho fundo
O céu melhor que tem no mundo

Se uma flor desabrocha
E o sol queima
A montanha vai gelando
Lembra o cheiro da morena…

 

Quando a música terminou, todos bateram uma grande salva de palmas! Shade, que ao longo da canção se apercebera que Mikel e Matoskah estavam a apaixonar-se um pelo outro, sentiu-se renovado e cheio de energia. A canção servira para ele expurgar a tristeza, o ciúme e a melancolia que sentia dentro si, até porque havia muitos mais homens na tribo, bastante atraentes! Um deles, um jovem mais ou menos da idade de Shade, chamado Kangee²⁸, tinha-o acompanhado no primeiro passeio pela aldeia. Ele era alto, definido e levemente musculoso. Tinha cabelos pretos bastante compridos, pela cintura. Moreno, tinha olhos escuros como o carvão e tinha sardas na cara. Kangee piscara-lhe o olho várias vezes ao longo da canção, enquanto dançava sozinho. Shade retribuíra-lhe os piscares de olhos. Quando os ânimos serenaram, Kangee veio ter com Shade e numa voz rouca e aveludada, perguntou:

- Queres ver as estrelas comigo?

De imediato, toda a tribo urrou. Shade baixou a cabeça, corado até à raiz dos cabelos! Alguns membros da tribo pegaram em tambores e entoaram louvores, enquanto outros serviam e distribuíam mais bebidas. Takoda lançou algumas ervas para a fogueira. Um cheiro floral, suave, calmante e revigorante espalhou-se pelo local. Shade inspirou fundo e com um acenar de cabeça, levantou-se. Dando as mãos a Kangee, acompanhou-o, com um sorriso cúmplice.

Notas do Autor:

²⁷ - Fogo;

²⁸ - Corvo;

[Continua...]