21 dezembro 2019

Interestelar

Interestelar ⚔️💔🚀


- Este dia nunca mais chega ao fim! - resmunguei eu, enquanto pensava no guisado que estaria à minha espera em casa, ao jantar.

Dei uma guinada com a minha nave e chegando a Júpiter, virei à esquerda e meti prego a fundo. A uma velocidade estonteante, em poucos minutos estava a chegar ao último local da minha ronda diária: os anéis de Saturno.

Introduzi na minha base de dados as informações que os leitores da minha nave me transmitiam, via pó estelar. Pelo que observava, os vários cinturões de rochas mantinham a velocidade constante habitual. Olhei para Saturno. 

No antigo Planeta Terra existiram muitas crenças e religiões que falavam de Saturno. Uns consideravam-no o Planeta da Transformação. Outros, o Planeta da Morte. Tempos houve em que Saturno era considerado o irmão menor de Júpiter, o Pai dos Deuses. Era Saturno quem trazia as colheitas e zelava pelo Fogo Divino. Acho engraçado aquilo em que os antigos humanos pensavam e acreditavam. Foi, aliás, por causa de crenças cegas que a Humanidade no Planeta Terra foi extinta. Tantas fizeram, que os recursos naturais esgotaram-se.

Pouco antes do fim, algumas dezenas de seres humanos foram enviados para o espaço, com o objectivo de atracarem na Lua e em Marte, a fim de iniciarem o processo de colonização. Não sei quanto aos outros, mas os meus pais conseguiram criar uma pequena colónia num planeta desconhecido. Lá fizeram amizade com um povo composto por répteis, a que nós respeitosamente chamamos de Reptilianos. 

Os Reptilianos são um povo pacífico. Compreenderam o que aconteceu e depois de intensas avaliações, aceitaram ajudar os poucos humanos que chegaram a XSA-1709, o nome que eles deram ao planeta deles. XSA-1709 fica nos confins do Sistema Solar Primaris, na Via Láctea. Apesar dos grandes avanços da tecnologia que permitiram aos últimos humanos sair da Terra, o que valeu aos humanos que vivem agora em XSA-1709 foi o facto de a nave ter entrado na órbita de um cometa. Graças a isso, a nave ganhou velocidade com o impacto da cauda dele e partiu pelo espaço, mais rápido do que algum cientista conseguira imaginar!

-  Dados introduzidos e confirmados! Peço autorização para regressar a casa!

Dia após dia, a minha rotina era aquela. Tinha de visitar diversos planetas na minha nave – uma pequena cápsula espacial alimentada a pó de estrela. Recolhia os dados e transmitia-os à Sede InterEspacial da Polícia Intergaláctica. Desde que me recorde, nunca houve problemas de maior. Os povos que habitam no Sistema Solar Primaris são pacíficos e cada povo tenta viver a sua vida sem incomodar os outros.

-  Daqui fala da Sede da Polícia Intergaláctica. Recebemos os dados! Pode regressar a casa, Feragth!

-  Até que enfim! - suspirei eu, feliz.    

Agarrei o volante e dei uma guinada para a direita. Coloquei a nave em piloto automático. Uma sesta vinha mesmo a calhar…

Não sei quanto tempo passou, quando ouvi uma pancada forte, no lado esquerdo da nave, junto do motor de propulsão. Na minha ideia, tinha acabado de fechar os olhos. Abri-os, estremunhado. Ainda estava perto dos anéis de Saturno. Tal como pensara. 

-  Devo ter chocado contra alguma rocha! - comentei comigo mesmo.

Avaliei os estragos. Pelos vistos tinha sido só uma pancada. Verifiquei as coordenadas. O visor indicou uma actividade magnética acima do habitual naquela área de Saturno. Fora isso, estava tudo em ordem. Rapidamente, cheguei à conclusão de que fora a gravidade de Saturno que interferira com a trajectória da nave. Como a tinha deixado em piloto automático, ela seguira a rota pré-marcada e com isso apanhara um pouco de energia termo-magnética do campo electromagnético de Saturno.

Consciente que teria de me manter acordado pelo resto da viagem, carreguei num botão ao lado do volante e de imediato surgiu uma portinha a deslizar junto do visor principal. A portinha abriu-se e tirei um copo com um chá reptiliano, feito com cauda de serpente. Levei o copo à boca e ele derreteu-se instantaneamente, junto com o líquido, saciando-me a sede e mantendo-me desperto pelo resto da viagem.

Foi com alegria que vi XSA-1709. Aquele planeta não era banhado pela luz do sol. Ela não chegava tão longe. No entanto, os Reptilianos tinham criado fontes de energia através da energia do próprio planeta e do brilho das estrelas. Eles não precisavam, já que gostavam da Escuridão. Depois de algum tempo, eles criaram estas soluções para os humanos. Em troca os humanos começaram a produzir bens, mais nutritivos que aqueles que eles tinham no planeta. Ambas as comunidades começaram a procriar entre si e hoje o planeta está a desenvolver-se bem, o suficiente para já fazer trocas comerciais com os planetas vizinhos, em particular, Plutão.

Reduzi a velocidade. Estava muito perto. Ao longe, já conseguia ver a Grade Árvore. Aquele era o mais importante e especial símbolo para os humanos. Fora ali que os primeiros humanos tinham caído, quando a nave onde vinham saiu da órbita do cometa, uma vez que este apanhou uma tempestade de meteoros e fragmentou-se contra um particularmente grande. A primeira semente que os humanos trouxeram foi plantada naquele local simbólico e graças ao solo enriquecido de XSA-1709, a árvore depressa cresceu, sendo visível a olho nu a muitos quilómetros de distância.

Depois de contornar a Grande Árvore, virei à esquerda, avancei durante mais uns minutos e por fim deparei-me com uma torre. Era ali que eu vivia. Liguei os propulsores para ganhar balanço e subi até ao 201º andar, onde ficava o meu apartamento.     

Um holograma com uma voz impessoal interpelou-me:

-  Bem-vindo a casa, amo! A sua mulher e o seu filho aguardam-no impacientes, para jantarem!

Era o meu robot pessoal. Eles funcionam como um guia e relembram-nos das tarefas que temos para fazer. Foram construídos em forma de hologramas para não consumirem bens de forma desnecessária. Eram alimentados com luz das estrelas e Neste mundo, todos os humanos tem um.

-  Obrigado Synce! Alguma novidade? - perguntei, enquanto estacionava a nave. Mais tarde iria guardá-la. Estava cheio de fome.  

-  Tudo em ordem, meu amo! Mando servir a refeição?

-  Sim, por favor! Vou só tomar um banho seco e já vou para a mesa!

-  Com certeza, amo! 

Synce desligou-se. Eu saltei da nave, para cima de uma painel que deslizava pela casa. Uma pequenina pedra fluorescente caiu do motor de propulsão e rolou para um jardim que nós temos em frente da casa, com vista para o espaço sideral. Apesar de estarmos noutro planeta, nós gostamos de recriar algumas coisas que existiam na Terra.

O painel conduziu-me à casa de banho, enquanto as minhas roupas se desfaziam. O meu fato espacial era feito num produto que se recriava todos os dias, depois de eu entrar em casa. Era muito prático. O painel parou por momentos, enquanto fazia as minhas necessidades fisiológicas, que eram convertidas em energia. Depois disso, um tubo lançou um pó multicolorido para cima de mim e senti todo o meu corpo a revitalizar-se. Era o chamado banho seco. Outro tubo surgiu na minha frente e sugou todo o pó. Aquele pó era restaurado em cada utilização. Depois de limpo, seco, revitalizado e cheiroso, o painel deslizou até ao meu fato, que eu usava quando estava em casa. Mais leve e confortável que o meu fato de trabalho, tinha a vantagem de se transformar com a força do pensamento, já que ele estava ligado ao cérebro, através de uma coroa que se colocava na testa.  

O painel por fim deslizou até à entrada da sala de jantar, onde o meu filho e a minha esposa me aguardavam.

-  Pai! Pai! - gritou o meu filhote, com alegria, saltando para o meu colo.

-  Até que enfim que chegaste, querido! Correu-te bem o dia? - perguntou a minha mulher, enquanto esfregávamos os narizes um no outro.     

O hábito de se dar beijos perdeu-se com o passar do tempo, ainda na antiga Terra. Os humanos já não se beijavam. Na verdade, os humanos já nem faziam coisas que outrora faziam com os seus corpos. Aquilo que se chamava de sexo. Isso fora algo que se perda, em virtude dos relacionamentos virtuais e do excesso de população. Quem era apanhado a fazer sexo era punido com a morte. A reprodução fora proibida devido ao excesso de seres humanos e escassez de recursos. Para muitos não foi fácil mas cedo se descobriram vantagens em acabar com o sexo propriamente dito.

A taxa de discussões conjugais caíram para mais de 90%. Muitos casais passaram a falar mais entre si e a valorizar outras coisas que antes não valorizavam. Por outro lado, surgiu mais violência e muitos fugiram para o Submundo - nome dado aos que se opunham ao novo regime anti-sexual - com o objectivo de poderem continuar a usufruir dos prazeres da carne. Infelizmente para eles, a escassez de alimentos levou-os ao extermínio mais depressa do que se poderia imaginar. Viveram pouco mais de dois anos antes de todos serem declarados mortos.

Sim Lhotis, o meu dia correu bem! A rotina do costume… E o teu, como foi?

Entrei em modo offline. Sabia que vinha por aí muita informação desnecessária.

- Oh… De manhã fui passear a Plutão com a filha dos Greathgs! Depois fomos a um drive-in que abriu em Solaris, lá servem uns batidos de nafta mesmo bons! Depois fomos a um cabeleireiro, fomos….

Ela falava, falava, falava. O meu filho aprendera a fazer como eu e também ele estava em modo offline. Quando accionávamos esse modo, os nossos olhos ficavam mais brilhantes e parecíamos estar a prestar atenção ao que se passava à nossa volta, mas na verdade… Estávamos a sobrevoar campos de flores, a rir e a cantar, felizes. Sentia saudades de um sítio que nunca conhecera. Que sensação estranha!

- O jantar está na mesa, meus amos! - anunciou Synce, fazendo eu e o meu filho despertarmos.

- Então e tu, Hugsae? Como correu o teu dia de escola, filho? - perguntei eu, depois de me servir e fazer uma oração.

Não sabia porque fazia aquilo, mas sentia-me melhor sempre que o fazia.

- Bom pai, eu tive aula de Astrofísica, viajamos até ao fundo do mar na aula de Biologia Marinha e o professor de Física-Quântica mandou isto para tu assinares…

O meu filho carregou num botão do seu próprio fato e de imediato surgiu um holograma no centro da mesa. Era um pedido de autorização para os alunos daquela turma fazerem uma Viagem Espácio-Temporal, a fim de compreenderem melhor as cordas temporais, o fenómeno que dera origem ao universo e a questão dos multiversos.     

Mantive-me o resto da refeição em silêncio, com o holograma a pairar no ar. Fiquei surpreso! O meu filho não tinha mais de 10 anos e já andava a aprender matérias tão avançadas? Eu sabia que ele era um rapaz sobredotado, mas ainda assim, era pequeno e franzino…

-  Não sei não… - retorqui, para desgosto de Hugsae. - Tu és muito novo e as viagens Espácio-Temporais não são assim tão seguras…

-  Oh pai! Mas todos os outros vão! Deixa-me ir!

-  Não é boa ideia… És muito novo!


-  Oh pai, vá lá! Eu tenho-me portado bem!

-  Não é por causa disso, filho… Estas viagens são muito desgastantes! E um pouco perigosas! A tua mãe que diga, quando fomos numa dessas viagens na nossa lua-de-mel! 

Hugsae virou-se para a mãe, com ar de estrela cadente.

-  Sim, pai! Deixa-o ir! - pedinchou a minha esposa, com um sorriso sedutor.

-  Eu vou pensar nisso… Mas não contes muito com o ovo na cauda do camaleão! - resmunguei, enquanto tomava um pouco de chá de serpente, depois de comer.   

Amuado, o meu filho foi-se embora para o quarto dele. Pelo deslizar do portal, percebi que tinha ficado chateado comigo.   

Deslizei o meu painel até uma janela e suspirei. A minha esposa estava um pouco chateada comigo.

-  Não te custava nada assinar aquela porcaria… Irias deixar o miúdo feliz, sabes?

-  Ora, tu sabes tão bem quanto eu que ele pode não aguentar a viagem! Afinal, ele é um híbritho! 

-  Então e depois que ele é um híbritho? Tens vergonha dele?


-  Achas? Que raio de fim de dia!

-  Então explica-me, homem! Lá porque o nosso filho não é um humano como nós, vamos impedi-lo de ter uma vida normal? 

Eu retorqui, zangado.

-  Olha Lhotis, o mundo lá fora é perigoso! Eu estou protegido porque trabalho para a Polícia Intergaláctica mas, ainda assim, sabes que todos os dias existem mil e uma coisas que me podem acontecer!

Lhotis fulminou-me com o olhar.

-  E por isso que chegas a casa sempre tão cansado e a comentar: “O meu dia foi mais do mesmo! Não aconteceu nada de especial!”? Se realmente vivesses dias tão perigosos, terias algo para contar! Além disso, eu também saio de casa, também conheço o espaço lá fora!

Aborrecido, deitei-me no sofá da sala. 

-  Vou dormir, até amanhã.

Chateada, Lhotis foi-se embora no seu painel para o quarto.

*No dia seguinte…*

-  Onde está a minha nave? A minha nave desapareceu! - gemi, assustado.

Não era costume deslocar-me na nave de trabalho para casa, mas no dia anterior estava mais cansado do que era habitual. Com a discussão, nem me tinha lembrado de guardar a nave na cápsula portátil. E agora, a minha nave profissional desaparecera!

Procurei em vão por pistas. De repente, Lhotis surgiu num holograma, em pânico:

-  O nosso menino desapareceu! Ele deixou um bilhete!

Naquele momento, fiz como os humanos antigos faziam. Larguei o painel e fui a correr até ao quarto do meu filho, onde encontrei a minha esposa a chorar. Peguei no holograma que o nosso filho tinha escrito e que dizia:

Como não me deixaste fazer a visita de estudo, vou partir na tua nave.
Levo comigo um condensador de fluxo, que me permitirá viajar no Tempo! Adeus!

Abracei-me a Lhotis sem saber o que fazer. O nosso único filho acabara de partir, rumo ao desconhecido, para nunca mais voltar…              


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